domingo, 28 de dezembro de 2008




Há alturas em que celebramos a passagem do tempo, no esquecimento propositado de que o ano que passa nos conduz ao último a passar, aquele que nos conduzirá à outra passagem, para quem assim espera, ou a coisa nenhuma, para quem nada espera.



Quem nos olhar de outro planeta, com a objectividade que a estranheza permite, perguntará o que festejamos nós e porque nos rimos, entre abraços e foguetes, perante o facto inelutável de nos termos aproximado mais 12 meses do total de meses que nos são dados.

Quando olhos para os adolescentes ‒ os que tenho em casa e os outros ‒ recordo como a vida naquela altura parece um daqueles pães que milagrosamente se multiplicam, apesar de se irem comendo com gosto. E se a ânfora do vinho também se renovar, à mesma medida do pão, então aproveite-se a boda, enquanto nos é dada a ilusão dos lábios molhados e dos dedos enfarinhados.

Quando olho para os velhos ‒ os meus, que me dão a mão no sentido inverso ao que antes davam, e os outros, com as mãos mais vazias do que as dos meus ‒ e vejo os olhos que se aclaram por entre o cálice das rugas, pergunto-me como será olhar para o copo depois de bebido o licor quase até à última gota.

Com a taça a meio, molho o dedo no champanhe e vejo-o filtrar a luz, em travos amargos e doces. Faço-me surda aos foguetes, com a sua perturbada explosão de flores efémeras. Sento-me na areia e espero a próxima maré cheia.


domingo, 7 de dezembro de 2008

A insustentável leveza da fé

Anita, sete anos:



- Mãe, a Maria, lá na escola, disse-me que não é o Pai Natal que traz os presentes, que são os pais que os compram. Mas tu não me mentias, pois não?



Mãe, veemente: - Claro que não, filha!



Anita, confusa: - Mas então? A Maria disse que os presentes dela foram comprados pelos pais!



Mãe, engenhosa: - Bem, é assim: o Pai Natal só traz presentes para os meninos que acreditam nele. Quando os meninos deixam de acreditar, os pais passam a comprar os presentes para os meninos não ficarem tristes por não os terem.



Anita, esclarecida: - Aahh!...



Momento de reflexão profunda. Depois:



- Mãe, eu vou acreditar sempre no Pai Natal!



Mãe, atrapalhada: - Ai sim, filha?...



Anita, pragmática:



- Claro, assim vamos ter sempre brinquedos de borla e tu poupas um dinheirão!











sábado, 25 de outubro de 2008

Outubro

O Outono à minha porta.
Saudades dos rios.



Lembranças dos espelhos.




Nostalgia dos voos.


E dos horizontes mais largos.


domingo, 12 de outubro de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 6. OMAR.

Omar abriu os olhos lentamente, primeiro sem se recordar de onde estava. Mas logo que olhou em volta não pôde fugir à memória do que aquele campo lhe mostrava. A erva já não era verde mas tinta do vermelho do sangue. As colinas ao longe escondiam-se sob os montes coloridos de corpos. As plumas dos elmos e o brilho feérico das armaduras compunham um desastroso quadro, de mistura com os panos claros dos seus companheiros caídos. O silêncio pesado que Alá fizera cair sobre todo o campo era cortado por vezes por gemidos difusos e pelo abafado estertor dos cavalos em agonia. Sobre as suas pernas, que ainda não movera, Omar viu caído um corpo sem cabeça. Libertou-se do peso morto e tentou pôr-se de pé. Nada lhe doía, embora sentisse um cansaço tão grande que cuidou que era a morte a puxá-lo devagarinho pelas pernas. Olhou em volta para avaliar a dimensão do festim que ela fizera nos campos de Guadalete. Teve forças para dar um passo atrás quando deparou com aqueles olhos abertos e fixos nos seus. A cabeça, cortada pelo pescoço, perdera o elmo e olhava-o de faces sujas de terra e boca pintada de sangue. Parecia lançar-lhe uma interrogação muda e aflita. Omar ajoelhou e teve vontade de chorar. Sem palavras, dirigiu a Alá os seus gestos de oração antes de fechar os olhos à cabeça. Não sabia bem que dizer na sua oração. Fora sempre um homem simples, que levava a vida por entre a incerteza da fome e do trabalho duro e deixara a sua casa e família para vir acorrer à batalha de Tarique, seu senhor. Levavam à Hispânia a palavra e a fé de Alá, sabia isso. E ali estavam todos aqueles cristãos mortos, juntamente com alguns dos seus irmãos muslims, esperando sob um silêncio de pedra a palavra e a fé de Alá. Devia portanto sentir-se feliz. Ou vitorioso, com o júbilo da glória conquistada. Porque não lhe dava então Alá essa alegria ? Começou a caminhar pelo campo, avançando com dificuldade por entre os destroços, evitando tropeçar nas mãos que se erguiam do chão como garras, enregeladas no último gesto antes da morte. De repente estacou. Alguma coisa no chão brilhava de forma diferente. Baixou-se para a apanhar. Era uma calçadura de veludo púrpura e o brilho vinha das muitas pedras que o bordavam a fio de ouro. Nunca Omar vira tantas pedras juntas na sua mão ! Quanto valeria aquela calçadura e que pé poderia tê-la possuído? Olhou em volta à procura do cadáver mas nenhum condizia com tal riqueza. Viu então a espora que se partira e, vendo-a bem, reconheceu nela gravadas as armas de Rodrigo, o Godo. Guardou o seu presente e continuou o caminho em busca do seu exército. Omar sorria. Agora sim, sabia porque o tinha Alá conduzido àquele campo de morte. Levava consigo, escondido debaixo das vestes, o futuro da sua família. Não mais passaria fome, não mais precisaria de trabalhar. Talvez até tomasse uma segunda esposa... e uma terceira... Alá é grande!


- Padre Gil, porque estás a arrumar a pena? Ainda não acabámos esta história!

- É verdade, Mohamed. Além naquelas tabuinhas está apontado o que contou aquele velho cavaleiro de Viseu. Chega-mas cá e ajuda-me, que já estou cansado e os meus olhos já não são o que eram.

Mohamed levantou-se do banco e trouxe as tabuinhas de cera.

- Este cavaleiro... pensas que é verdade o que contou?
- Porque não seria ? – disse Gil Peres afiando o aparo da sua pena de ganso - Deus, que dá os dons, também sabe dar os castigos.
- Mas este castigo... Viver durante sete anos numa cova com uma serpente para cumprir penitência?...
- E quantos males fez Rodrigo ? Cuidas tu que a penitência foi pesada de mais ?
- Se o povo assim o conta, lá pelas terras de Viseu, e se a cova ainda lá está e os velhos garantem que o ouviram aos seus avós e estes aos seus e assim até ao tempo dos mouros, talvez seja verdade. Bom, escreve, que vou ditar-te a penitência de Rodrigo tal como o cavaleiro a contou e eu apontei na cera.
Gil Peres pegou na sovela para não deixar fugir o pergaminho da estante e preparou-se para recomeçar a escrever.
- Padre Gil... – interrompeu Mohamed. - O que foi agora, homem de Deus?
- E Lataba? Porque é que Al-Razi não nos conta mais nada dela? Qual terá sido o seu destino?
- Dizes bem – observou Gil Peres voltando a fechar o tinteiro para que a tinta não secasse – é verdade que o cronista nada mais nos conta dela. Penso que, se queremos ouvi-la, teremos de perguntar aos trovadores e aos jograis e não aos cronistas. Porque estes só nos contam o que conduz os povos ao seu destino e, nessa história, Lataba já teve o seu papel. São os trovadores que nos falam das coitas de amor e de saudade ou da alegria dos encontros dos amantes. Perguntemos aos trovadores que esta noite vêm jantar ao paço d’el rei D.Dinis de que fala Lataba, se da coita de amor por Rodrigo, que a não mereceu, se dos ledos encontros com Ricardo, que a esperou.
- Nunca sabemos bem, não é verdade, Padre, o que vai no coração das mulheres? Mas devíamos, lá isso devíamos, porque por elas deixam os homens perder o seu reino.


A lenda do Rei Rodrigo, último rei dos Godos, começou a formar-se logo que os cristãos, refugiados nas Astúrias, iniciaram a Reconquista. A história foi-se transformando e evoluindo ao longo dos séculos. Tanto os cronistas árabes como os cristãos peninsulares contaram-na e cada um deu-lhe o seu próprio toque. No reinado de D.Dinis, rei que mandou traduzir para português quase todas as crónicas hispânicas de que teve conhecimento, ela andava contada também na de Mohamed Al-Razi, mais conhecido por Mouro Razis, cronista hispânico dos sécs. IX-X. D.Dinis encarregou a tradução da crónica ao clérigo Gil Peres e ao Mouro Mohamed. Tinham de fazer equipa porque o clérigo não sabia árabe e o mouro não sabia escrever bem português. Mas Gil Peres tinha alma de romancista e deu o seu próprio jeito à história de Rodrigo, inventando algumas coisas e dando a outras o toque necessário para interessar os leitores. Pela minha parte, confesso que também lhe dei uns toquezinhos aqui e ali, porque as necessidades do romance também mudam com os tempos. Foi pouca coisa. É quase tudo do Gil Peres. De qualquer modo, quem quiser lê-la no português do séc.XIV, é favor procurá-la no segundo volume da edição de Lindley Cintra da Crónica Geral de Espanha de 1344 (INCM).



domingo, 28 de setembro de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 5. A CONDESSA

Lataba adormecera. Fazendo sinal às outras donzelas para que velassem o seu sono, a Condessa retirou-se silenciosamente para os seus aposentos. Escondeu o rosto nas mãos. A dor que sentia pela história que a filha lhe contara entre lágrimas tornava-se, no seu peito, numa espécie de novelo feito de raiva e pena que se desenrolava até à garganta.- Onde está Julião, meu marido? – perguntou às damas que a acompanhavam.- Senhora, chamou todos os de seu conselho e está reunido com eles. Pede-lhes ajuda para decidir o que fazer.A Condessa levantou-se, decidindo num momento participar naquele conselho. Em corte de homens não seria esperada a sua ida mas, sem pensar nisso mais do que um momento, a Condessa tirou o toucado florido que trazia e substituíu-o por outro, de veludo negro.


Entrou na sala onde o Conde estava reunido com os seus vassalos. Encontrou-o de rosto desfeito, entre o silêncio total que se fizera depois de terem os vassalos escutado a verdadeira razão por que Lataba regressara a Ceuta. Vendo-a chegar, o Conde ergueu os olhos e perguntou-lhe:
- E pois, Senhora, porque vindes cá?
A Condessa deu dois passos em frente, colocou-se ao lado do marido e disse:
- Eu venho como a mais desaventurada mulher que nasceu em Ceuta, desonrada pelo maior traidor que o mundo conheceu! E, amigos, por Deus e por mesura, rogo-vos que me ouçais um pouco!
E todos os vassalos acenando com a cabeça, mostraram vontade de a ouvir. E disse ela:
- Amigos, a desonra pesa menos a quem tem modos de a cobrar! E por isso digo ao Conde D.Julião que tudo faça para cobrar esta desonra que nos foi feita! E se ele for homem de tal natureza que tenha em pouco este feito, eu digo chãmente que daí lhe virá muito mal, pois que logo me despedirei dele e direi a todos que não sou sua mulher, e ir-me-ei para Cospi, que é minha herdade, e para outros castelos que tenho, que foram do meu pai, e de lá lhe farei tal guerra que, antes de um ano, todos vós serão obrigados a fugir de Ceuta para não morrerem! Rogo-vos que não tomeis em pouco este assunto. E vede, Conde, quanto bem fez Deus a vossa filha, que tudo deitou a perder aquele traidor ! Porque ela era a mulher mais bela e de melhores dons que havia, e a mais filha d’algo que há em Ceuta até Marrocos. E mesmo que não tivesse todas estas qualidades e que fosse a pior do mundo! Senhor Conde, é vossa filha! Deveis doer-vos do seu mal que tanto lhe pesa como todos vimos que lhe pesava! E, amigos, não sei que mais vos diga senão que a dor que tenho desta filha, que assim vejo destruída, me fará morrer antes do meu dia!
E dizendo isto, um soluço lhe atravessou a garganta e a fez fraquejar e apoiar-se à cadeira do marido. Os vassalos baixaram os olhos e o Conde, amparando-a, disse-lhe:
- Senhora, quando aqui chamei estes bons cavaleiros não foi por outra coisa senão para lhes dizer isso mesmo que vós dissestes. E agora só lhes peço que me digam o que devo fazer, porque a dor que me atravessa o coração não me deixa ver com a razão o caminho a tomar.
Os vassalos olharam uns para os outros e não se decidiam a quebrar o silêncio. Foi então que se levantou Ricardo, que se despedira à varanda de Lataba quando ela partira para Toledo:
- Pois todos vós vos calais, quero eu falar, ainda que por minha juventude mo leveis a mal! Aqui juro eu a Deus e sobre minha lei que se eu fosse senhor poderoso e houvesse tal filha e ma desonrasse um homem a quem eu tanto serviço fizesse como havedes feito a Rodrigo, que não deixaria de cobrar dele justiça de tal modo que nunca o mundo o esqueceria! E se com ele quiserdes haver guerra, Senhor D. Julião, aqui me tendes para isso, com a lealdade que sempre vos tive e com duzentos cavaleiros filhos d’algo que farei trazer de Brapaquedo.
Dizendo ele isto, calou-se. Ergueu-se então um bom cavaleiro, homem de muita coragem e experiência de guerra, tido por todos como de bom aviso e comprovada sisudez. Chamava-se D.Simão e para ele se voltaram todas as cabeças:
- Senhor, Deus, que sabe todas as coisas, sabe bem que, desde que eu fui teu vassalo sempre te dei aquele melhor conselho que eu entendi. E bem te digo que nunca te vi em tempo que te mais mester fizesse bom conselho que agora. E por isso te digo que eu seria aleivoso se não te dissesse agora o que é de razão. Não me parece bem que vás contra el rei D.Rodrigo para lhe fazer guerra. E por estas razões. Primeiro, porque Rodrigo é teu senhor e juraste-lhe lealdade, apesar de não teres dele recebido a tua terra. Segundo, porque bem sabes como Deus o tem protegido em tudo o que faz e o tornou o homem mais poderoso de Espanha. E nós sabemos bem que até hoje nunca tu fizeste nada contra o direito, de que te possam acusar. E, se tu travares com ele guerra e o venceres, todos te desprezarão por teres destruído o teu Senhor e, se vores vencido, ninguém te lamentará, antes todos dirão que foi justiça de Deus, porque o desafiaste contra o direito. E, Senhor, o meu conselho é que não faças nada e que deixes isto nas mãos de Deus, que te dará a justiça que procuras. Porque, Senhor, quando o homem alguma coisa faz por que o possam censurarm, de todo o mundo deve ter medo. E não penses que te digo isto por meu bem ou por receio da guerra, que tu bem sabes como o meu braço empunhará a espada, se tu quiseres, enquanto o fôlego no corpo me durar!
Ainda as palavras de D.Simão não estavam terminadas e já se erguia a Condessa. As lágrimas tinham secado e os olhos faiscavam-lhe.
- Ouvi, D.Simão! Nunca Deus mande que vós sejais desonrado, porque, se o fôsseis, muito daríeis o conselho doutro modo! Mas Deus não permitirá que estes cavaleiros vos creiam. Ó homem bom ! E não haveis vergonha do que dissestes, que guardasse lealdade a um homem que tanta deslealdade lhe fez, sendo-lhe ele sempre tão leal e amigo ?! Ó varão! E não sabeis vós quanto afam e trabalho haveis tomado e quantas espadadas e setadas haveis levado para nunca el rei Rodrigo haver dano por estes lados? E digo-vos mais: que antes eu queria ser tão pobre de quanto no mundo houvesse e antes queria andar pelas ruas pedindo do que não fazer tudo para me vingar! Senhor D. Julião, por Deus e por mercê, se não quereis fazer a guerra, deixai que a farei eu, pois eu tenho tal confiança na Virgem Maria, pela qual eu troquei a fé em que nasci e deixei o meu pai e a minha mãe e os meus irmãos e a grande fortuna e todos os bens que eu tinha na minha terra, que ela não quererá que eu morra sem primeiro ver a morte daquele que tão vilmente escarneceu da minha boa filha, que era espelho de bondade e a que havia de maior valor sobre todas as mulheres dalém e daquém mar!
Parecia que a Condessa diria mais palavras mas a voz faltou-lhe com a dor e a indignação. Viram-na calar-se mas não fraquejar. De cabeça erguida e olhos secos, continuava em pé, no meio do conselho dos cavaleiros, e não recuou para dar a palavra a ninguém. Cortou o silêncio um cavaleiro de nome Henrique, primo da Condessa, e de muito preço junto do Conde:
- Senhor, ouvi tudo o que aqui foi dito e a mim parece que te devo dar conselho que seja em teu benefício. E o que eu vejo é que tu não poderás de nenhum modo fazer nada que nem Deus nem o mundo te censure porque não deves a Rodrigo vassalagem, pois que não foi dele que recebeste a tua terra. Mas ainda que lhe devesses lealdade como a senhor teu: direito terias de lhe fazer guerra, pois havia entre vós um acordo de entreajuda que ele quebrou quando assim fez a tua desonra. E ponhamos que, fazendo-lhe guerra, não o pudesses vencer. Enquanto estiveres em Ceuta nada te pode fazer. E tu tens aqui mais de dois mil cavaleiros que são forte hoste para enfrentar o rei da Espanha. E demais que ele não está prevenido contra ti e tu és senhor de todos os portos daquém e dalém mar de Ceuta e podes, se quiseres, fazer entrar em Espanha quem tu entenderes, de tal modo escondido que ninguém o perceberá. E esta é a tua força, que Rodrigo não poderá vencer! Por isso, prepara-te para a guerra, que eu mandarei avisar os reis mouros que estejam prestes.


E estas foram as notícias que receberam Muça, filho de Nocaide, e Miramolim e Tarique. E não passaram muitos dias sobre as areias de Ceuta a estarem prontas muitas galés, onde embarcaram escondidamente guerreiros mouros, que aportaram a Aljazira. E aí reuniu Tarique o seu exército e daí partiu para uma guerra feroz contra as terras de Espanha. E que vos direi da guerra, senão que a sua história é sempre a mesma em todas as partes e todos os tempos?


Quando Rodrigo teve notícias da queda das suas cidades do sul, aparelhou o seu exército e fez-se transportar à batalha. Ia em cima de um carro puxado por dois cavalos e feito de tal modo de marfim, ouro e prata e pedras preciosas que era maravilha nunca vista. E em cima do carro ia uma tenda e na tenda ia uma cadeira tão rica e trabalhada de pedras preciosas que nunca fora vista outra igual. E nessa cadeira ia Rodrigo, vestido e calçado de panos de ouro e pedras preciosas.
A Guadalete chegou o rei da Espanha. Ainda perguntava a si mesmo como fora que tudo aquilo acontecera mas sabia que não havia tempo de procurar respostas. Ao longe, os guerreiros mouros povoavam os montes, montados em cavalos de guerra, com seus arções, com as mãos nas lanças e nas espadas e nas béstas.



(termina no próximo post...)

domingo, 14 de setembro de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 4. A CARTA.




Todos sabem que, quando lhes falta o sol, as flores escurecem. Misteriosas são aquelas que perdem as cores sem que a ninguém seja dado ver o que lhes falta. Assim foi Lataba. Era a mesma e não era. Demudava-se-lhe a cor ou o brilho, não se poderia dizer. Calava-se quando as outras riam, escusava-se com um pálido sorriso quando lhe pediam que dançasse. Encostava o ombro à janela e ficava a mirar as águas do Tejo, que passavam. E tão grande pesar lhe crescia no coração que começou de perder sua formusura mui desmesuradamente.




Alquifa via-a assim e esperava o dia em que lhe dissesse as suas razões. Mas Lataba nada dizia porque muito se envergonhava do que lhe escurecia o coração e sabia que nada de bom depois daquilo lhe poderia vir. E disse-lhe Alquifa:
- Amiga, tu bem sabes que desde que eu nasci nunca fiz coisa que te não dissesse e de te falar sempre me veio consolo e ajuda. E o mesmo cuidava eu de ti e agora vejo que algum mal te atormenta e pesa-me que não mo queiras dizer. Se é coisa em que eu te possa aconselhar, peço-te que mo contes e ajudar-te-ei.
Então lhe contou Lataba tudo o que se passara com el rei Rodrigo. E disse-lhe a prudente Alquifa:
- Amiga, digo-te que se tal coisa me acontecesse, o melhor que eu faria seria contar tudo a um homem em quem confiasse e de tal maneira que eu soubesse que me defenderia.
Respondeu Lataba:
- Se aqueles que ouvissem o que se passou julgassem o caso tal como aconteceu, eu não hesitaria em contá-lo a meu pai. Mas eu sei bem que o meu pai é homem de bom siso e eu bem vejo que todos os homens sisudos julgam as mulheres por más e por isso não ouso mandar dizê-lo ao meu pai, porque tenho medo que não acredite na minha inocência e julgue que o fiz por malícia e me abandone.
E disse Alquifa:
- Não tem sentido isso que dizes, pois os homens julgam sempre como lhes dermos a julgar. E sabe por certo que, se nada fizeres e el rei continuar a demandar-te, não pode estar que não emprenhes e, depois depois que fores prenhe, não poderás mais esconder o que aconteceu. E a rainha, que te quer como a uma filha, se o souber difamar-te-á e aí, sim, serás a mais infeliz mulher que pode haver. Por isso, se te calares não poderás evitar que seja sabido, com grande dano e vergonha tua. Mas se o contares com sabedoria e a quem deves, nunca te poderão acusar de nada. O melhor que podes fazer é escrever ao teu pai uma tal carta que o faça julgar o caso como a ti convém.


E assim sentaram-se ambas a escrever a carta, que uma ditava e a outra escrevia:
«Ó mui honrado e discreto, sisudo, prezado e temido senhor de Ceuta, Conde D. Julião, pai senhor, eu, Lataba, vossa desonrada filha, me mando encomendar a vós e beijar vossas mãos. A desonra da filha ofensa é do bom pai. Quero que saibais que vós, cuidando fazer vossa honra e meu bom futuro mandando-me para casa d’el rei D. Rodrigo, sucedeu o contrário, porque fizestes vossa desonra e minha grande perda, porque el rei Rodrigo, muito sem meu grado e contra minha vontade, deitou-se comigo. E por isso vos rogo, senhor, por Deus e por piedade, que me mandeis buscar, senão crede que eu me matarei com as minhas próprias mãos, pois eu antes queria cem vezes morrer do que viver mais um dia em casa d’el rei D.Rodrigo. Se quereis minha vida, mandai-me buscar para que veja ainda uma vez a minha mãe, senão despeço-me de vós.»
Entregue a carta a um escudeiro, com instruções para não parar no caminho até que chegasse a Ceuta, juntaram-se ambas às outras donzelas, fazendo por não dar sinais de nenhuma estranheza.



Quando Julião leu a carta da sua filha, o desgosto que sentiu foi tão grande que abalou aquele homem tão experimentado na guerra. Sem nada dizer a ninguém, mandou aparelhar uma galé e meteu-se ao mar. E andou tanto e com tão bons ventos que depressa chegou a Toledo. Ouvindo anúncio da sua chegada, Rodrigo, que o prezava como a nenhum outro cavaleiro, apressou-se a ir recebê-lo. E logo que fizeram as saudações que a tais grandes senhores pertenciam, perguntou-lhe:
- Pois D.Julião, que vos fez vir a Toledo tão inesperadamente? Algum mal porventura vos veio?
- Senhor – disse Julião – não queira Deus que a mim venha senão bem, enquanto vós fordes vivo, porque a vossa fortuna me dá tanto ânimo que nunca homem se cruzou comigo na guerra que o eu não vencesse. E, se vos apraz, contar-vos-ei como se passou a batalha que tive com Moluca, senhor de Calçom.
E Rodrigo disse que lhe prazia. E o Conde descreveu-lhe com que esforço, seu e de seus parentes e vassalos, conseguira mais uma vez suster o desejo dos mouros de se aproximarem do mar e como defendera o senhorio cristão de Ceuta. E como, chegado da batalha, fora achar muito doente a condessa sua esposa, e como lhe pesara tal coisa porque por aquela esposa era ele muito respeitado e temido em Ceuta, pelos parentes poderosos que ela tinha entre os mouros. E como ela lhe pedira que visse ao menos uma vez a sua filha, que muito amava, antes de morrer.
Ouvindo isto os vassalos que com o Conde vinham, e sabendo que era verdade a história da batalha mas não a da doença da esposa, cuidaram que fortes razões teria o Conde para levar embora a sua filha.
E disse-lhe Rodrigo:
- Por boa fé, D. Julião, muito me apraz de como vos haveis saído bem na batalha! E se vencestes Moluca, que é o mais forte, não há mouro nenhum de além-mar de que eu haja de temer-me. Mas o que dizeis da Condessa é coisa triste para mim, que a tenho por mui boa dona, a quem Deus logo dê saúde! Por ela vos entrego vossa filha mas tomai nota: não para que fique sempre convosco! Logo que sua mãe for curada, quero que ma envieis de novo, na companhia de todo o seu séquito como agora está, porque muita honra e alegria traz à minha casa.
O Conde hesitou por momentos, como se algumas palavras lhe quisessem romper os lábios mas ele as prendesse com uma corrente de ferro. Deu um passo em frente e olhando Rodrigo no olhos, disse-lhe apenas:
- Senhor, quando Deus quiser que ela venha, eu vo-la farei vir com tal companhia e séquito como nunca outra donzela entrou em Espanha!
E dito isto, recolheu à galé, onde lhe trouxeram a sua filha, com suas donzelas e servidores, e fizeram-se depressa ao mar.



(continua...)


sábado, 30 de agosto de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 3. Branco e preto, cristal e esmeralda

«Dizem que os poetas cantam mais com a arte do que com verdade» pensou Rodrigo quando viu Lataba pela primeira vez «mas os que cantam a formusura desta donzela nunca a língua lhes chegou para a dizer».
Recebida na corte por Eylata, a menina de Ceuta encantou a rainha com os seus bons modos e todos quantos a conheciam louvavam o conde que tal filha trouxera a Toledo. Como uma flor que nunca perde as cores, Lataba fez suas amigas todas as filhas de algo que acompanhavam a esposa do rei. Nenhuma negava que em Lataba se via como num espelho e até os mais sisudos cavaleiros não escondiam os olhos quando lhes ficavam presos na alegria de Lataba, quando a viam entrar na sala ou dançando como uma pétala na brisa.
«Em boa hora a mandei vir», pensava Rodrigo...



A história dos doze guardiões não esquecia ao rei, por isso não demorou muitos dias a anunciar aos seus cavaleiros a prometida visita. Junto da casa, o rei não evitou a surpresa quando avistou a obra de Hércules. Era tal qual lhe tinha sido contada e de mais maravilha ainda do que a boca dos guardadores pudera dizer.
- Senhor, aqui tens a tua chave – disse o mais velho dos doze, apontando a pequena porta carregada de cadeados.
Sem a tomar na mão, Rodrigo avançou, deixando entender que a sua disposição não era de fechar mas de abrir, para ver o que estava dentro. E todos lhe disseram que o não fizesse, pois não tinha que fazer o que os outros reis da Espanha não acharam bom que se fizesse. E disse Rodrigo:
- O lugar dos tesouros é no meu paço e aos encantamentos não receio, pois que não tenho que temer.
- Fá-lo por tua conta – disseram os cavaleiros -, sem o nosso conselho e só por tua vontade.
Mandou então trazer as chaves dos cadeados e abriu todos os que prendiam a porta. Depois que foi aberta, entrou, seguido dos principais do seu conselho. E a casa, que de fora era redonda, mostrou-se uma sala quadrada, iluminada por uma fresta pequena no tecto. E cada parede da quadra, toda feita de uma pedra só, era de sua cor. Uma era branca de neve, que mais branca não podia ser, e na frente dela a outra era negra como a coisa mais negra que pudesse ser; e outra parede era verde como a mais verde esmeralda poderia ser, e na frente dela a outra era de cristal, tão clara como o cristal poderia ser. Não havia em toda a sala mais nada senão um esteio no meio dela, da altura de um homem, e com uma porta assaz pequena. Sobre a porta, gravada em letras gregas a ouro, lia-se: «Esta é uma das maravilhas de Hércules». Aberta a porta, viu-se lá dentro uma casa e dentro da casa uma arca de prata e na arca lia-se: «O rei em cujo tempo esta arca for aberta não pode estar que não veja maravilhas antes que morra». E Rodrigo exclamou:
- Ah! Eu bem dizia. Aqui dentro está o que procuro e que tanto defendeu Hércules!
E então quebrou com a sua própria mão o cadeado que fechava a arca. Dentro da arca estava um véu branco fechado e muito bem encerrado por tábuas. De uma só vez, Rodrigo puxou-o, rasgando-o nos pregos que o detinham. Estendido o véu, viram nele pintadas figuras de cavaleiros árabes, montados em cavalos de guerra, com seus arções, com as mãos nas lanças e nas espadas e nas béstas. Por cima da pintura, lia-se: «Quando este pano for aberto, homens que andam assim armados conquistarão a Espanha e serão dela senhores».
Emudecido, Rodrigo deixou cair o pano. Mas vendo os olhares severos dos seus cavaleiros, levantou a cabeça e disse-lhes:
- Deus não quer que seja verdade o que aqui diz! E julgam vocês que eu não adivinhava que alguma coisa de fazer temor podia aqui estar? Agora está feito e não devemos pensar mais nisso. Quanto a este perigo, não temos que nos preocupar, que tenho meus cuidados bem tomados!
Fez prometer a todos os presentes que nada diriam do que haviam visto, mandou voltar a encerrar a casa e regressou ao paço.



Para esquecer as preocupações, dispensou Rodrigo os cavaleiros e foi-se a passear nos jardins do palácio. Ao longe ouviu risos e vozes que cantarolavam. Curioso, aproximou-se. As donzelas da rainha haviam tomado um momento de lazer. Junto a uma fonte, brincavam com a água e tinham tirado os toucados. No meio delas, Lataba era a mais bonita. Rodrigo ficou parado, escondido atrás das sebes, com os olhos presos nela. E eis que, nas danças da brincadeira, o vestido lhe voou e Rodrigo lhe viu o travadoiro da perna. E era tão branco e bem feito que não podia haver outro tornozelo mais belo no mundo!... E logo que a assim viu, começou de lhe querer mui grande bem.


Desde esse dia, Rodrigo não mais pensou noutra coisa senão na brancura do tornozelo de Lataba. De tal maneira que um dia ousou segredar-lhe ao ouvido promessas e desafios. Espantada, ela defendeu-se com boas palavras, escusando-se a querer ouvir tais coisas. Mas depois percebeu que ele não iria desistir porque insistia em cada corredor ou salão em que a encontrava.
Logo que de manhã descia à sala da rainha, cruzava-se com Rodrigo que saía. Se de tarde fazia um passeio com a sua amiga Alquifa, Rodrigo estava por onde ela havia de passar. Se ao serão era obrigatório dançar, Rodrigo havia de primeiro a convidar para a roda. E de todas essas vezes a olhava com olhares intensos e lhe dizia palavras estranhas que mais ninguém ouvia.
Tanto a perseguiu, que a defesa que ela de si fazia uma noite não lhe prestou e houve-se de vencer, porque era mulher...



- Porque era mulher ? ! – exlamou Mohamed, levantando-se do banco – Que quereis dizer com isso, Padre Gil ?
Gil Peres levantou-se igualmente. Precisava de esticar as pernas. Afinal, ele e Mohamed estavam ali, de volta das tabuinhas de cera desde que nascera o sol e já iam sendo horas de almoçar.
- Não sei bem, se quereis que vos diga, amigo Mohamed. Teria Lataba sucumbido à força de Rodrigo, que a violou? Sabeis que mulher nenhuma resiste ao braço mais forte de um homem... Ou teria ela sucumbido à paixão, como quase sempre sucede às mulheres às quais os homens sabem dizer as palavras certas?
Mohamed fez um gesto de impaciência, enquanto acabava de esticar uma folha de pergaminho sobre a estante:
- Mas afinal que sabeis vós disso? Não sois clérigo ? Que sabeis vós da paixão das mulheres?
- Ah, caro Mohamed ! – disse Gil Peres, pousando o estilete – não vos enfadeis, nem julgueis facilmente as sabedorias alheias... conheço o coração das mulheres. E o dos homens também. Foi por isso que vos pedi paciência para esta nossa missão.
- É bem certo, Padre, que quando el rei D. Dinis me mandou que convosco trasladasse a crónica do grande Al-Razi, não encontrei lá muito do que vejo que aqui escrevestes e digo-vos que me parece mui mal mudar assim a história do cronista.
- A história não mudou nada, amigo. Só lhe fiz crescer umas coisas para melhor dar que pensar a quem a ler. Bem vedes: o que eles não vão ter de pensar para entender este “porque era mulher”!...


(continua...)


domingo, 17 de agosto de 2008

Pedimos desculpa pela interrupção...

Convencida de que a publicidade neste caso não seria enganosa,

convencida - sim ! - de que seria possível vir de férias trazendo o Rodrigo debaixo do braço só porque tinha expendido 50 euros numa daquelas plaquinhas que dizem que nos põem a navegar na net num instante mesmo que estejamos no meio do Saara,

confesso a minha ingenuidade pela confiança nos anúncios da TV.

É mentira! Aquela coisa não nos liga à net sempre que queremos e como queremos! Deixo o conselho: não comprem aquelas placas qualquer que seja o dono da loja que as vende.

Escrevo esta mensagem num momento de Wi-Fi proporcionado pelo presidente do oásis do meu Saara.

Agradeço todos os comentários ao último post (sobretudo os da Maria Papoila e do Gonçalinho). Vou ter de fazer uma interrupção na história do Rodrigo mas prometo os restantes episódios logo que regresse à civilização.

Boas férias !

quinta-feira, 31 de julho de 2008

A Casa de Hércules. 2. «Não entrarás!»

Quando o Conde anunciou a sua filha a decisão de a enviar à corte, Lataba quisera dizer porque não. Mas não podia expor as suas razões. Não chegara a hora por que Ricardo esperava. Viera ele a Ceuta trazendo nos ouvidos as notícias da sua beleza, deixara ele o seu pequeno reino de Brapaquedo, onde o rei seu pai lhe consentira que partisse à aventura, em busca de fortes aliados. Ricardo chegara havia ainda poucos meses, servira Julião na guerra contra os mouros e a ninguém deixara saber a que varanda se encostava ao fim da tarde, quando Lataba se recolhia a repousar acompanhada apenas pela sua leal amiga Alquifa. Só ela testemunhara as promessas do jovem cavaleiro, que jurara servir o pai até que a recompensa merecesse ser a mão da filha.
Donzela sagaz, Alquifa! Cumprida da boa sensatez Deus deu às mulheres, coube-lhe nessa tarde tomar as mãos da amiga e mostrar-lhe como um pouco de espera em nada diminuiria os planos dos dois namorados. Foi ela que se encarregou de transmitir a Ricardo a notícia da partida da sua amada, esforçando-o a que preseverasse no serviço do Conde para que tão depressa quanto uma donzela leva a aprender a dançar pudesse oferecer-se-lhe como o esposo poderoso e nobre que dispensaria Lataba de permanecer em Toledo. Animada por esta esperança, a filha do Conde consentiu na partida, disposta a tudo fazer para ser à rainha Eylata a mais doce e agradável donzela da sua corte.


- Senhor – disse o primeiro dos anciãos, aproximando-se do trono – nós aqui somos vindos trazer-te esta chave, com que deves cumprir o teu dever de rei da Hispânia.

- Que chave ? – inquiriu Rodrigo, olhando-a sem entender.

- Esta – disse o ancião – é a chave do cadeado que te cumpre na casa de Hércules.

E vendo que o rei o não entendia, dispôs-se a contar-lhe como Hércules, Senhor da Grécia, conquistara e povoara, em tempos muito antigos, a Hispânia. Expulsanado os maus inimigos da terra, trouxera-lhe ele o nome de terra de bem, povoara-a de gentes calorosas e inclinadas à verdade. Depois, em grande segredo, construira sozinho uma casa em Toledo, fechando-a com um cadeado, e entregara a chave aos doze homens mais sábios do povo, dizendo: «Que ninguém abra nunca a porta desta casa!»

- ... e todos os reis depois juntaram a este cada um o seu cadeado. E partiu para a Grécia! E sabe, Senhor, que esta casa é tão subtil que não há quem saiba dizer-te como foi feita, porque é toda redonda como uma bola e de tal tamanho que se sobre ela atirares uma pedra não a verás cair do outro lado. E assenta somente em quatro grandes leões de ouro, de tal maravilha que não saberíamos hoje fazer outros iguais. E é toda coberta por pedras mármores cada uma de sua cor, tão pequenas que nenhuma é maior do que o punho de um homem e de tal feição ajuntadas que ninguém pode dizer onde começa uma e acaba a outra. Todas juntas figuram as mais nobres cavalarias de que ouviste falar. Não que lá tenham sido pintadas com tinta mas porque as próprias pedras nos contam as histórias. Não tem janela nenhuma mas tão só uma porta pequena, com letras entalhadas que dizem assim: «Eu proíbo que alguém, por muito ousado que seja, hoje ou amanhã, abra esta porta e mando a todos os reis que a defendam como eu defendi».


- E o que tem dentro essa casa? – perguntou Rodrigo.

- Ninguém sabe – disseram os anciãos – Porque todos os reis antes de ti cumpriram o mandado de Hércules. E hoje é a tua vez.

Rodrigo olhou pensativamente a chave acabada de forjar que lhe ofereciam. Por fim disse:

- Amanhã lá irei vê-la e logo saberei se é coisa em que haja de pôr o meu cadeado. Pois que casa tão bem guardada não pode ter dentro senão um grande tesouro ou um grande segredo. E se segredo é, eu o desvendarei e, se é tesouro, a mim pertence, que sou o rei!

Os velhos bem lhe disseram que não fizesse tal coisa mas antes seguisse o exemplo dos bons reis de Espanha. Rodrigo, porém, despediu-os com um gesto, sem mais conversa.

Na manhã seguinte, a visita teve, porém, de ser retardada, porque ao palácio chegou notícia da vinda de uma frota de Ceuta subindo o Tejo. Era Julião, que, com grande séquito de vassalos, trazia sua filha Lataba, que se fazia acompanhar da sua amiga Alquifa.




(Continua...)

domingo, 27 de julho de 2008

A Casa de Hércules. 1. Rodrigo.

Depois de mais de um século de paz e progresso, o reino de Vitiza o Godo, começou a dar sinais de grande inquietação. Ficavam na memória dourada dos mitos as gloriosas batalhas com que os visigodos haviam avançado pela Hispânia, lançando dela fora os irmãos germânicos que os haviam precedido na conquista do mais apetecido extremo ocidental do império romano, rico de minério, de longas costas abundantes de peixe e de misteriosos e sagrados promontórios sobre o mar, a avistar terras que se estendiam para lá das águas do Mar do Meio da Terra e das do Mar Oceano, que Estrabão o Grego e Plínio o Velho descreviam como uma circular cintura de água em volta da Terra.
O poder e a riqueza sempre despertam múltiplas cobiças. Havia apenas 79 anos que nas areias escaldantes da Arábia morrera um novo Profeta, deixando aos seus descendentes a missão de conduzir todos os homens à veneração de Alá. Estendidos até aos limites da orla marítima, os muslims interromperam o seu ímpeto não por vontade mas pela lança de Julião, Conde visigodo, vassalo de Vitiza, por ele estabelecido como Senhor dos Portos de Ceuta com a missão de estancar para ocidente o fluxo da moirama. Julião cumpria com lealdade e valor a tarefa entregue, para a qual contava com a aliança dos berberes ribeirinhos aonde fora buscar a sua esposa.


No reino de Vitiza, onde os seus dois filhos ainda crianças cresciam à espera da cadeira imperial paterna, creciam também os murmúrios clandestinos da ambição. Nas ruas estreitas de Toledo, os grandes senhores espreitavam-se uns aos outros, dividindo-se em dois bandos hostis e arranjando cada um modos doces de chamar à aba das suas capas os pequenos príncipes, quando soasse a hora da sucessão. E ainda mal Vitiza acabara de agonizar quando o mais velho dos meninos se viu resgatado por um dos bandos, que para ele reclamava o trono, e o mais novo foi encaminhado para o outro bando, que lhe reclamava igual direito. E sobre isto houve grande contenda.

O que então se seguiu de disputas e ameaças de guerra é história de todos os tempos, sempre que os homens desejam poder mais do que a sorte lhes destinou. E alguns nobres godos, que ainda traziam nas épicas lembranças do seu passado guerreiro o gosto das soluções justas, reuniram cortes e acordaram escolher de entre si aquele que, por boa fama de cavalaria e justiça e honra, tomasse o regimento do reino, criasse os filhos de Vitiza como pertencia à sua condição e lhes devolvesse o trono e a coroa logo que a sua maturidade despontasse.
E acharam que havia um homem que, nobre e esforçado cavaleiro de muitas batalhas, de límpidos olhos, coração forte e destemida vontade, seria o melhor regedor que o reino poderia achar. O seu nome era Rodrigo. Unanimemente eleito, saíu Rodrigo do conselho investido da regência e conduziu-se ao palácio real, onde entrou levando pelo braço a sua esposa Eylata e aconchegando no seio os dois príncipes.

Confiantes, os Godos serenaram e depuseram as armas, que Rodrigo fez recolher e guardar numa sala fechada do palácio, proibindo terminantemente que outras novas fossem construídas. Decisão sensata, julgaram os cavaleiros, de senhor que ama a paz acima de todos os desamores. Na noite seguinte ao recolher das armas, Rodrigo enviou a casa dos anteriores partidos discordantes um corpo de cavaleiros armados, que silenciosamente mataram os pais e os filhos varões. De manhã, fez correr pregão nas ruas de Toledo, anunciando que os punidos haviam recusado entregar as armas e que, com a dureza necessária, se alcançara a pacificação do reino. Nos meses em frente, assistiu a Hispânia à mais firme onda de paz que se poderia esperar de um homem prudente. Todos os vassalos de Vitiza leais a seus filhos foram mortos ou desterrados. As suas esposas, filhas e filhos pequenos foram chamados à corte e recebidos condignamente, com as honras e bem-fazer devidos a quem nascera de alta condição. Os castelos que os vassalos de Vitiza assim deixavam desguarnecidos foram entregues a leais servidores de Rodrigo, até que nenhum homem ficou na Hispânia que de alta condição fosse que a não devesse à grada mercê do novo senhor.

À distante Ceuta as notícias chegavam tarde e levadas por mensageiros de Rodrigo, que garantiam estar o reino entregue à paz, depois de tomadas as medidas necessárias. Julião nada temia. Não podia ser substituído. Nenhum como ele alcançaria as mesmas alianças, devidas a laços de parentesco, que tinham até então garantido o entrave aos filhos de Ismael. Outro recado levavam ainda os mensageiros: Rodrigo chamava à corte a filha única do Conde Julião, Lataba, donzela de que por todo o lado se ouvia cantar maravilhas de graça e entendimento. Na corte – dizia Rodrigo – entre as nobres donzelas da sua esposa Eylata, a filha do Conde seria educada como princesa e ser-lhe-ia achado o esposo condigno, cristão e nobre, como ela não poderia achar em Ceuta, entre berberes e mouros. Julião apreciou o oferecimento. Coisa boa e proveitosa seria para a sua única filha, que sua esposa, a Condessa, criara com os desvelos de mãe mas longe da requintada cortesia que só em Toledo se poderia achar.

Em Toledo, Rodrigo alcançava o domínio da cidade. Não se ouvia uma voz que murmurasse , não se encontravam olhares sinuosos entre as torres do castelo. Serenamente, como pertence a homem seguro de si, Rodrigo mandou preparar a sua coroação e aclamação como rei. A festa que durante uma semana fez correr por todas as vilas e cidades do reino deixou grata lembrança entre os novos súbditos. Nunca tal rei, tão generoso e feliz, se vira! E, como todos sabem, a felicidade do rei atrai a benevolência divina sobre o seu povo. Correu o ouro pelas ruas, distribuído aos pobres, os bois assavam-se nas praças e as mesas franqueavam-se a todos os que se acercassem. Tão exquisitas iguarias nunca haviam sido provadas e os jograis e bailarinas cantavam e bailavam pela noite dentro, numa alegria que parecia não ter fim! Os filhos de Vitiza acompanhavam o novo rei e sorriam a seu lado, como meninos a quem Deus dera um novo pai. Que felizes os Godos, por tal rei lhes ter sido enviado por Deus!...



Terminados os festejos, chegou ao palácio pedindo para ser recebido um inesperado grupo de visitantes. Foram anunciados ao rei como os doze anciãos guardadores da casa de Hércules. Surpreendido, Rodrigo recebeu-os.


(Continua...)


sábado, 12 de julho de 2008

Ponto pé-de-flor

No início da adolescência foi aprender a bordar para casa de uma senhora de respeito. Não sei se então as mestras de bordados exerciam também um magistério espiritual mas a verdade é que foi essa senhora que lhe ensinou que os homens são de outra espécie, respeitável porque é deles que vem o sustento, o futuro e o bom nome, mas fracos na cobiça da carne. Às mulheres cabe a sabedoria da espera: garantir-lhes a confiança necessária ao progresso da família mas também fugir-lhes comedidamente, para que resistam aos seus próprios fulgores.


Entre o ponto Richelieu (a mestra dizia richelié) e o ponto cruz, ligaram-se-lhe no espírito as linhas que a levaram a prometer à mestra que não consentiria a homem nenhum, salvo ao marido, quando ele viesse, mais do que a cordial distância, amigável e de temperado convívio. Teria então perto de 13 anos e a costura daquela promessa fez-se-lhe com os pontos certinhos e apertados de quem já bordava até ponto de pérola. Era, portanto, preciso esperar.


Nas noites quentes de Julho, enquanto lavava a loiça do jantar, depois de os irmãos pequenos terem saído para brincar na rua com os miúdos da vizinhança, dava uma curta licença à fantasia. As mãos cheias de espuma enluvavam-se-lhe e estendia-as a um rapaz de capa escura que assomava à porta da cozinha. Lá fora, entre os risos dos miúdos, escutava o relinchar do cavalo que ele prendera à entrada. Não era bonito mas tinha o queixo quadrado e os cabelos negros e um olhar difícil de entender mas onde ela se revia como num espelho.


Despertava com o pigarro do pai, sentado ao canto da cozinha. Já então ele sofria as fragilidades de uma angina de peito que se iria desenvolver com o tempo. A sua bronquite, agravada pelo maço de Definitivos diário, vinha desde a sua mais remota infância encher-lhe as noites de tosses distantes e cavas, ouvidas no quarto ao lado. O cheiro da linhaça quente embrulhada em pano de linho e os unguentos de enxúndia de galinha com que a mãe tratava o catarro e a debilidade do pai haviam de ficar para sempre na sua memória com uma lembrança enjoativa, vagamente lamentável, que embrulhava a memória do pai. Às vezes imaginava-o como ele se descrevia nas suas histórias de juventude aventurosa de contrabandista. Vindo da raia do Guadiana para o litoral, contava-lhe histórias luminosas de contrabandistas heróicos e de estúpidos guardas-fiscais, que acabavam sempre enganados no desenlace. Aos contos de bruxas e meninos perdidos que contava a avó ao serão, ela preferia estas odisseias picarescas, vividas enquanto as brasas do lar se iam consumindo lentamente e a sombra do pai se agigantava na parede de cal amarelada da lareira.

Lavada a loiça, enchia o pesado ferro de brasas e dava início à última tarefa do dia, vincando milimetricamente os calções dos irmãos.


Em breve eles iriam sair a cavalo!
A ela ficava-lhe a lenta e difícil tarefa da espera...