sábado, 30 de agosto de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 3. Branco e preto, cristal e esmeralda

«Dizem que os poetas cantam mais com a arte do que com verdade» pensou Rodrigo quando viu Lataba pela primeira vez «mas os que cantam a formusura desta donzela nunca a língua lhes chegou para a dizer».
Recebida na corte por Eylata, a menina de Ceuta encantou a rainha com os seus bons modos e todos quantos a conheciam louvavam o conde que tal filha trouxera a Toledo. Como uma flor que nunca perde as cores, Lataba fez suas amigas todas as filhas de algo que acompanhavam a esposa do rei. Nenhuma negava que em Lataba se via como num espelho e até os mais sisudos cavaleiros não escondiam os olhos quando lhes ficavam presos na alegria de Lataba, quando a viam entrar na sala ou dançando como uma pétala na brisa.
«Em boa hora a mandei vir», pensava Rodrigo...



A história dos doze guardiões não esquecia ao rei, por isso não demorou muitos dias a anunciar aos seus cavaleiros a prometida visita. Junto da casa, o rei não evitou a surpresa quando avistou a obra de Hércules. Era tal qual lhe tinha sido contada e de mais maravilha ainda do que a boca dos guardadores pudera dizer.
- Senhor, aqui tens a tua chave – disse o mais velho dos doze, apontando a pequena porta carregada de cadeados.
Sem a tomar na mão, Rodrigo avançou, deixando entender que a sua disposição não era de fechar mas de abrir, para ver o que estava dentro. E todos lhe disseram que o não fizesse, pois não tinha que fazer o que os outros reis da Espanha não acharam bom que se fizesse. E disse Rodrigo:
- O lugar dos tesouros é no meu paço e aos encantamentos não receio, pois que não tenho que temer.
- Fá-lo por tua conta – disseram os cavaleiros -, sem o nosso conselho e só por tua vontade.
Mandou então trazer as chaves dos cadeados e abriu todos os que prendiam a porta. Depois que foi aberta, entrou, seguido dos principais do seu conselho. E a casa, que de fora era redonda, mostrou-se uma sala quadrada, iluminada por uma fresta pequena no tecto. E cada parede da quadra, toda feita de uma pedra só, era de sua cor. Uma era branca de neve, que mais branca não podia ser, e na frente dela a outra era negra como a coisa mais negra que pudesse ser; e outra parede era verde como a mais verde esmeralda poderia ser, e na frente dela a outra era de cristal, tão clara como o cristal poderia ser. Não havia em toda a sala mais nada senão um esteio no meio dela, da altura de um homem, e com uma porta assaz pequena. Sobre a porta, gravada em letras gregas a ouro, lia-se: «Esta é uma das maravilhas de Hércules». Aberta a porta, viu-se lá dentro uma casa e dentro da casa uma arca de prata e na arca lia-se: «O rei em cujo tempo esta arca for aberta não pode estar que não veja maravilhas antes que morra». E Rodrigo exclamou:
- Ah! Eu bem dizia. Aqui dentro está o que procuro e que tanto defendeu Hércules!
E então quebrou com a sua própria mão o cadeado que fechava a arca. Dentro da arca estava um véu branco fechado e muito bem encerrado por tábuas. De uma só vez, Rodrigo puxou-o, rasgando-o nos pregos que o detinham. Estendido o véu, viram nele pintadas figuras de cavaleiros árabes, montados em cavalos de guerra, com seus arções, com as mãos nas lanças e nas espadas e nas béstas. Por cima da pintura, lia-se: «Quando este pano for aberto, homens que andam assim armados conquistarão a Espanha e serão dela senhores».
Emudecido, Rodrigo deixou cair o pano. Mas vendo os olhares severos dos seus cavaleiros, levantou a cabeça e disse-lhes:
- Deus não quer que seja verdade o que aqui diz! E julgam vocês que eu não adivinhava que alguma coisa de fazer temor podia aqui estar? Agora está feito e não devemos pensar mais nisso. Quanto a este perigo, não temos que nos preocupar, que tenho meus cuidados bem tomados!
Fez prometer a todos os presentes que nada diriam do que haviam visto, mandou voltar a encerrar a casa e regressou ao paço.



Para esquecer as preocupações, dispensou Rodrigo os cavaleiros e foi-se a passear nos jardins do palácio. Ao longe ouviu risos e vozes que cantarolavam. Curioso, aproximou-se. As donzelas da rainha haviam tomado um momento de lazer. Junto a uma fonte, brincavam com a água e tinham tirado os toucados. No meio delas, Lataba era a mais bonita. Rodrigo ficou parado, escondido atrás das sebes, com os olhos presos nela. E eis que, nas danças da brincadeira, o vestido lhe voou e Rodrigo lhe viu o travadoiro da perna. E era tão branco e bem feito que não podia haver outro tornozelo mais belo no mundo!... E logo que a assim viu, começou de lhe querer mui grande bem.


Desde esse dia, Rodrigo não mais pensou noutra coisa senão na brancura do tornozelo de Lataba. De tal maneira que um dia ousou segredar-lhe ao ouvido promessas e desafios. Espantada, ela defendeu-se com boas palavras, escusando-se a querer ouvir tais coisas. Mas depois percebeu que ele não iria desistir porque insistia em cada corredor ou salão em que a encontrava.
Logo que de manhã descia à sala da rainha, cruzava-se com Rodrigo que saía. Se de tarde fazia um passeio com a sua amiga Alquifa, Rodrigo estava por onde ela havia de passar. Se ao serão era obrigatório dançar, Rodrigo havia de primeiro a convidar para a roda. E de todas essas vezes a olhava com olhares intensos e lhe dizia palavras estranhas que mais ninguém ouvia.
Tanto a perseguiu, que a defesa que ela de si fazia uma noite não lhe prestou e houve-se de vencer, porque era mulher...



- Porque era mulher ? ! – exlamou Mohamed, levantando-se do banco – Que quereis dizer com isso, Padre Gil ?
Gil Peres levantou-se igualmente. Precisava de esticar as pernas. Afinal, ele e Mohamed estavam ali, de volta das tabuinhas de cera desde que nascera o sol e já iam sendo horas de almoçar.
- Não sei bem, se quereis que vos diga, amigo Mohamed. Teria Lataba sucumbido à força de Rodrigo, que a violou? Sabeis que mulher nenhuma resiste ao braço mais forte de um homem... Ou teria ela sucumbido à paixão, como quase sempre sucede às mulheres às quais os homens sabem dizer as palavras certas?
Mohamed fez um gesto de impaciência, enquanto acabava de esticar uma folha de pergaminho sobre a estante:
- Mas afinal que sabeis vós disso? Não sois clérigo ? Que sabeis vós da paixão das mulheres?
- Ah, caro Mohamed ! – disse Gil Peres, pousando o estilete – não vos enfadeis, nem julgueis facilmente as sabedorias alheias... conheço o coração das mulheres. E o dos homens também. Foi por isso que vos pedi paciência para esta nossa missão.
- É bem certo, Padre, que quando el rei D. Dinis me mandou que convosco trasladasse a crónica do grande Al-Razi, não encontrei lá muito do que vejo que aqui escrevestes e digo-vos que me parece mui mal mudar assim a história do cronista.
- A história não mudou nada, amigo. Só lhe fiz crescer umas coisas para melhor dar que pensar a quem a ler. Bem vedes: o que eles não vão ter de pensar para entender este “porque era mulher”!...


(continua...)