domingo, 12 de outubro de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 6. OMAR.

Omar abriu os olhos lentamente, primeiro sem se recordar de onde estava. Mas logo que olhou em volta não pôde fugir à memória do que aquele campo lhe mostrava. A erva já não era verde mas tinta do vermelho do sangue. As colinas ao longe escondiam-se sob os montes coloridos de corpos. As plumas dos elmos e o brilho feérico das armaduras compunham um desastroso quadro, de mistura com os panos claros dos seus companheiros caídos. O silêncio pesado que Alá fizera cair sobre todo o campo era cortado por vezes por gemidos difusos e pelo abafado estertor dos cavalos em agonia. Sobre as suas pernas, que ainda não movera, Omar viu caído um corpo sem cabeça. Libertou-se do peso morto e tentou pôr-se de pé. Nada lhe doía, embora sentisse um cansaço tão grande que cuidou que era a morte a puxá-lo devagarinho pelas pernas. Olhou em volta para avaliar a dimensão do festim que ela fizera nos campos de Guadalete. Teve forças para dar um passo atrás quando deparou com aqueles olhos abertos e fixos nos seus. A cabeça, cortada pelo pescoço, perdera o elmo e olhava-o de faces sujas de terra e boca pintada de sangue. Parecia lançar-lhe uma interrogação muda e aflita. Omar ajoelhou e teve vontade de chorar. Sem palavras, dirigiu a Alá os seus gestos de oração antes de fechar os olhos à cabeça. Não sabia bem que dizer na sua oração. Fora sempre um homem simples, que levava a vida por entre a incerteza da fome e do trabalho duro e deixara a sua casa e família para vir acorrer à batalha de Tarique, seu senhor. Levavam à Hispânia a palavra e a fé de Alá, sabia isso. E ali estavam todos aqueles cristãos mortos, juntamente com alguns dos seus irmãos muslims, esperando sob um silêncio de pedra a palavra e a fé de Alá. Devia portanto sentir-se feliz. Ou vitorioso, com o júbilo da glória conquistada. Porque não lhe dava então Alá essa alegria ? Começou a caminhar pelo campo, avançando com dificuldade por entre os destroços, evitando tropeçar nas mãos que se erguiam do chão como garras, enregeladas no último gesto antes da morte. De repente estacou. Alguma coisa no chão brilhava de forma diferente. Baixou-se para a apanhar. Era uma calçadura de veludo púrpura e o brilho vinha das muitas pedras que o bordavam a fio de ouro. Nunca Omar vira tantas pedras juntas na sua mão ! Quanto valeria aquela calçadura e que pé poderia tê-la possuído? Olhou em volta à procura do cadáver mas nenhum condizia com tal riqueza. Viu então a espora que se partira e, vendo-a bem, reconheceu nela gravadas as armas de Rodrigo, o Godo. Guardou o seu presente e continuou o caminho em busca do seu exército. Omar sorria. Agora sim, sabia porque o tinha Alá conduzido àquele campo de morte. Levava consigo, escondido debaixo das vestes, o futuro da sua família. Não mais passaria fome, não mais precisaria de trabalhar. Talvez até tomasse uma segunda esposa... e uma terceira... Alá é grande!


- Padre Gil, porque estás a arrumar a pena? Ainda não acabámos esta história!

- É verdade, Mohamed. Além naquelas tabuinhas está apontado o que contou aquele velho cavaleiro de Viseu. Chega-mas cá e ajuda-me, que já estou cansado e os meus olhos já não são o que eram.

Mohamed levantou-se do banco e trouxe as tabuinhas de cera.

- Este cavaleiro... pensas que é verdade o que contou?
- Porque não seria ? – disse Gil Peres afiando o aparo da sua pena de ganso - Deus, que dá os dons, também sabe dar os castigos.
- Mas este castigo... Viver durante sete anos numa cova com uma serpente para cumprir penitência?...
- E quantos males fez Rodrigo ? Cuidas tu que a penitência foi pesada de mais ?
- Se o povo assim o conta, lá pelas terras de Viseu, e se a cova ainda lá está e os velhos garantem que o ouviram aos seus avós e estes aos seus e assim até ao tempo dos mouros, talvez seja verdade. Bom, escreve, que vou ditar-te a penitência de Rodrigo tal como o cavaleiro a contou e eu apontei na cera.
Gil Peres pegou na sovela para não deixar fugir o pergaminho da estante e preparou-se para recomeçar a escrever.
- Padre Gil... – interrompeu Mohamed. - O que foi agora, homem de Deus?
- E Lataba? Porque é que Al-Razi não nos conta mais nada dela? Qual terá sido o seu destino?
- Dizes bem – observou Gil Peres voltando a fechar o tinteiro para que a tinta não secasse – é verdade que o cronista nada mais nos conta dela. Penso que, se queremos ouvi-la, teremos de perguntar aos trovadores e aos jograis e não aos cronistas. Porque estes só nos contam o que conduz os povos ao seu destino e, nessa história, Lataba já teve o seu papel. São os trovadores que nos falam das coitas de amor e de saudade ou da alegria dos encontros dos amantes. Perguntemos aos trovadores que esta noite vêm jantar ao paço d’el rei D.Dinis de que fala Lataba, se da coita de amor por Rodrigo, que a não mereceu, se dos ledos encontros com Ricardo, que a esperou.
- Nunca sabemos bem, não é verdade, Padre, o que vai no coração das mulheres? Mas devíamos, lá isso devíamos, porque por elas deixam os homens perder o seu reino.


A lenda do Rei Rodrigo, último rei dos Godos, começou a formar-se logo que os cristãos, refugiados nas Astúrias, iniciaram a Reconquista. A história foi-se transformando e evoluindo ao longo dos séculos. Tanto os cronistas árabes como os cristãos peninsulares contaram-na e cada um deu-lhe o seu próprio toque. No reinado de D.Dinis, rei que mandou traduzir para português quase todas as crónicas hispânicas de que teve conhecimento, ela andava contada também na de Mohamed Al-Razi, mais conhecido por Mouro Razis, cronista hispânico dos sécs. IX-X. D.Dinis encarregou a tradução da crónica ao clérigo Gil Peres e ao Mouro Mohamed. Tinham de fazer equipa porque o clérigo não sabia árabe e o mouro não sabia escrever bem português. Mas Gil Peres tinha alma de romancista e deu o seu próprio jeito à história de Rodrigo, inventando algumas coisas e dando a outras o toque necessário para interessar os leitores. Pela minha parte, confesso que também lhe dei uns toquezinhos aqui e ali, porque as necessidades do romance também mudam com os tempos. Foi pouca coisa. É quase tudo do Gil Peres. De qualquer modo, quem quiser lê-la no português do séc.XIV, é favor procurá-la no segundo volume da edição de Lindley Cintra da Crónica Geral de Espanha de 1344 (INCM).