Vejo vir dalém branca luz doutro dia. Santa Maria val, que pior do que estar em prisão é do cárcere nos darem a ver a luz do dia!
Que se de escuridão fosse todo o tempo que aqui temos, memória da vida não nos seria consentida, por esquecer que havíamos a luz do sol . Assim esta quadra branca que entra nestas pedras negras faz mais negro o meu vestido, traz aos meus olhos estas mãos apodrecendo como rosas murchas e lentas.
Ai, minhas mãos presas de cadeias! Ai mesquinha, minhas mãos que já doutras foram tomadas !
Ai, Fernão, que de ti me aparta esta luz que vejo coada sem ter pecado para tal!
Vinhas tu ao meu castelo nas noites em que o luar se levantava nos meus lençóis e o canto do rouxinol anunciava o trote da tua montada... D.Anrique não tomava do meu sono mais cuidado que eu tomava de suas idas a Astorga.
E ele, o que aqui me tem, me teve de aleivosa por teus beijos!
Ah, Fernão, que pouco ele sabe doutras coisas que não sejam lides e poderes! Eu juro, juro que lhe dei com estas mãos que ele amarra outras lições mais doces!
A minha mãe me dizia «as carnes do filho se britam em tempo que se britarem as da que as fez».
Meu filho, eu te trouxe a esta luz com que me castigas!
Este seio vazio te deu sangue para verteres com mouros, este sangue seco nos ferros te deu o peito esforçado nas lutas.
Filho, néscio e rude, queres matar a tua carne?
Cuidas tu, Afonso, que levas da vida mor cousa em teres tua a terra de meu pai? Também eu cuidava que tê-la minha era como ter do meu nome a lembrança do que foi antes. Não queria roubar-ta, que após de minha tua seria, mas te digo que esta vida é curta, neste reino longe do Senhor, e noutra teremos mor bem que ora não é logrado. E se para o que inda vive não for toda a honra do que inda é seu, como saberemos nós qual é a hora da morte? E logo que temos os filhos senhores de cavalo montar, logo querem que o cavalo seja o nosso?
Ah, Afonso, o teu reino será grande, os teus castelos lançarão estandarte por outros mundos fora! Crê no que os meus olhos quase cegos estão vendo, que eles enxergam melhor a tua cegueira.
Terras terão os teus filhos que ora não foram inda inventadas. E o Senhor lhes dará benção de largada e lhes dará missão de alargar.
Por isso que há-de vir, Afonso, os que virão hão-de perdoar o teu orgulho e bendizer a tua ambição. Mas eu, que ora me vou morrendo por elas, as maldigo como é maldito todo o acto de força!
Fernão, meu amado, estou eu falando com ele não sei porquê.
Bem sei eu que inda que aqui estivesse me não escutaria. Mas me parece a mim que lhe falo quando o tinha no regaço e com meus braços o trazia defendido dos males do mundo. E cuido eu, sandia, que o sangue que se me vai dos pulsos ferrados inda é o que o tinha preso a mim!... Esqueço que tal corda a arrancou ele com suas mãos, que mais fortes são que as minhas e nenhuma protecção mais buscam senão no escudo de guerra que lhe deu seu pai.
D.Anrique lhe deu tudo. A terra que meu pai me dera de arras lha deu como se sua fosse, a espada com que ora fere os mouros lha deu Anrique e também o ódio com que os fere. Lhe deu seu pai o cálice da guerra, o cheiro do sangue e o estrondo do ferro nas lides, porque al não tinha para dar.
Não o amei eu. Como poderia, Fernão, amar homem a quem fora dada por feitos de guerra? Bem sonhara meus sonhos de donzela quando Anrique me levou de manhã no seu cavalo e me deixou de manhã deitada em sangue, antes que se fosse à caça.
Que grão pecado fiz eu, Senhor?
Lembram-me a água das fontes do castelo de meu pai, que nunca mais verei...
Malditas águas que te geraram, maldita luz que te mostrei, Afonso!
Pois tua lei é de sangue e a tua mão é de força e a tua lembrança mais curta do que te ensinei, eu te maldigo e te digo que como a minha carne quebraste com ferros, tu saberás que a carne do filho é a mesma de sua mãe!
E pois com ferro me tens, o ferro te quebrará antes que cumpras teus dias!
Assim te maldigo, Afonso, meu filho e meu amor!