segunda-feira, 18 de junho de 2007

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces, estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom que eu os ouvisse quando me dizem: "vem por aqui!". Eu olho-os com olhos lassos, (há, nos olhos meus, ironias e cansaços) e cruzo os braços, e nunca vou por ali...
A minha glória é esta: Criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. Que eu vivo com o mesmo sem-vontade com que rasguei o ventre à minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos, como farrapos, arrastar os pés sangrentos, a ir por aí...
Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens, e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas e coragem para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, e vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas, tendes jardins, tendes canteiros, tendes pátria, tendes tectos, e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; mas eu, que nunca principio nem acabo, nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

Texto: José Régio
Foto: Paulo Madeira