sábado, 24 de novembro de 2007

O RATO. Parte I.

- Hoje vem! - murmurou entre dentes, acariciando o rosto num gesto muito seu e sem poder impedir-se de o dizer audivelmente, como se a emoção que sentia não pudesse caber-lhe na garganta. - É hoje! - repetiu e permitiu-se um leve sorriso, que não o trairia.
Custara-lhe concentrar-se no trabalho. Receava ter confundido os processos ou ter errado no carimbo a apor. E na contagem do número de páginas, não teria saltado alguma? Esperava que não. Era um bom funcionário. Tomava sempre muito cuidado para não se enganar em nada, não só por ser de natureza meticulosa mas porque não suportaria que o repreendessem. Desde o primeiro dia naquele emprego jurara a si mesmo que nada correria mal. Estudara o chefe, os seus gostos e os seus hábitos, procurava sorrir-lhe descuidadamente e fazer tudo conforme ele desejaria sem que tivessem de lho dizer. Não gostava de receber ordens. Por isso procurava antecipar-se a elas. Sabia, no seu íntimo, que o chefe o apreciava, a sua eficiência, o seu feitio arrumado, organizado. Gostaria que, naquele emprego, não houvesse mais do que o chefe. Os colegas pareciam-lhe sempre estranhos. Ao princípio, quando viera, cheio de esperanças e boas decisões, tentara conviver. Acalentara mesmo a esperança de uma amizade, que nunca mais tivera desde os seus tempos de liceu em que era um rapaz como os outros, com o futuro pela frente. Depois, bem... era melhor não pensar nisso.
Arrumou os arquivos, alinhou as canetas e as borrachas e preparou-se para sair. Eram 5 horas. Espreitou a rua. Chuviscava. Felicitou-se por ter trazido a gabardina, apesar de o sol com que se anunciara o dia não fazer prever a noite chuvosa. Os colegas não se tinham prevenido. Claro, nenhum pensava no futuro, como ele. Uma onda de enorme satisfação acalentou-o ao pensar que iriam agora olhar com arrependimento para a sua gabardina. Os colegas já se tinham levantado. Nunca esperavam pelas 5 horas para se prepararem para sair. Olhou-os de soslaio. Antes, doera-lhe que tivessem respondido às suas tentativas de aproximação com uma meia distância, primeiro curiosa, indiferente logo depois. Agora, porém, isso já não o desgostava. Afinal, eles não sabiam... Viu o Rodrigues apontar os chuviscos à Celeste, rindo. E ela, tonta, aproveitava para se abrigar no braço que ele lhe oferecia... Deixá-la lá! O Rodrigues era um pedante! Pelo visto, ela gostava das gravatinhas janotas e dos perfumes caros que ele usava! E com certeza também dos amigos dele, do carro vermelho, das discotecas onde ele conhecia o porteiro, dos almoços nas esplanadas... E aquela gargalhada dele? Devia ser disso que a Celeste gostava, de barulho! Afinal, ela era como as outras. Ele já não se interessava por ela. Fora um disparate achá-la sedutora, só porque tinha um ar independente e era bonita. Ele deveria saber há muito que essas mulheres não sabem dar valor a um homem a sério, capaz de se dedicar. Gostam de mostrar que são mais do que os homens. Lembrava-lhe a Luísa, que ele decidira esquecer depois do divórcio.
O céu escurecia. Foi andando devagar pela marginal. A chuvinha não o incomodava. Pensava na noite que o esperava. Conseguira. Como ele sempre soubera. Há já duas semanas que planeara tudo para quando ela viesse. Não tinha muito jeito para essas coisas de que as mulheres gostam, como velas e música romântica, mas fizera um esforço. Pedira até a ajuda da empregada da loja no dia em que comprara o vinho. Qual o melhor vinho para um jantar de noivado? Íntimo?, perguntara a rapariga, e ele sorrira cumplicemente. Estava tudo pronto. Restava-lhe esperar. Prolongou o caminho até casa. Parou na banca de jornais do costume. Comprava o semanário todas as sextas-feiras. Costumava lê-lo de uma ponta à outra nos seus enormes fins-de-semana. Não tinha mais nada para fazer. Mas ultimamente tudo mudara e os fins-de-semana eram diferentes. Não tinha tempo de ler o jornal. Por isso o acto de o comprar tinha um sabor especial que só ele conhecia. Olhou os transeuntes com uma certa pena. Caminhavam apressados para os seus fim-de-semanazinhos insignificantes, televisão, talvez futebol, talvez um passeio pelas esplanadas da praia...
Tomé, o cego, estava no seu posto. Conheceu-o logo pela voz quando ele deu as boas tardes. Tirou o jornal rindo-se intimamente da brincadeira que todas as semanas fazia. Pagava com muitas moedas pequenas, às quais faltavam sempre 2 cêntimos. O pobre cego nunca dera pela falta. Ainda agradecia no fim. Pobre diabo! Deixava-se enganar como um pato! Havia naquela brincadeira um gosto que o encantava. Quando seria que o cego notaria o engano? Quase apostava consigo mesmo. É hoje, não é hoje!
Afastou-se pela marginal. O mar estava verde como se fosse Verão. O que não poderiam fazer nos próximos verões! Ele iria esperá-la ao escritório, ela viria ao seu encontro sorrindo, a aconchegar-se-lhe no braço. Ele protegê-la-ia na confusão dos peões de fim de tarde. Veriam o pôr-do-sol estendidos na areia da praia, como se fossem dois garotos. E ao sábado, se ele poupasse nos gastos durante a semana, poderia levá-la a jantar na esplanada, como fazia o Rodrigues. É claro que ela estava habituada a outra vida! Uma advogada não almoça uma sandes e uma cerveja, como ele fazia todos os dias. Mas afinal não fora por ele que ela se interessara? Ela sabia que no fundo ele valia muito mais do que o emprego como oficial de justiça. Ela sabia valorizar um homem. Percebera que ele era inteligente, que sabia levar a água ao seu moinho. As mulheres gostam de homens que conseguem aquilo que querem. E ela descobrira com surpresa que ele era um desses homens. E fora aí que se apaixonara por ele.
Meteu a chave à porta com o coração aos pulos. Ainda lhe custava a crer que ela se tinha de facto apaixonado por ele. Ficava emocionado quando tomava consciência de que tinha mesmo acontecido. Quem lhe diria, naquele dia… Acariciou o rosto, com um sorriso triunfante. No dia em que a vira pela primeira vez ela nem sequer reparara nele. Mas ele, ao vê-la subir as escadas do tribunal, ficara paralisado. Era a mulher mais bela que conhecera. Ao pé dela, a Luísa, que sempre lhe parecera bonita, não passava de uma professorazinha simpática. E a Celeste? Uma caixeira de perfumaria, com toda aquela maquilhagem a esconder a vulgaridade dos traços. Mas esta... Não que tivesse alguma coisa de definivelmente superior! Era o conjunto. O corte de cabelo atrevido, a pele imaculada, o fato de corte caro, o andar seguro. Os olhos pareciam espalhar domínio à sua volta, enquanto falava de modo contraditoriamente sóbrio e caloroso com os advogados que a acompanhavam. Nunca a tinha visto ali. Conhecia os advogados, eram os habituais da comarca. Pensou que ela estivesse envolvida nalgum processo, testemunha ou queixosa. O que seria? Por algum tempo ficou parado na escada, com uma pasta de instrução de processo na mão, prestes a deixar cair os documentos. Levara a mão ao rosto, num gesto maquinal, enquanto a via afastar-se e desaparecer no bar. Pensara por algum tempo ir atrás dela, arranjar uma desculpa qualquer para lhe falar. Mas não lhe ocorria nenhuma e deixou-se ficar. Como fora tonto! Deixara-se paralisar, completamente apaixonado desde o primeiro momento.
Pousou o jornal em cima do sofá e olhou para o relógio: 6 horas. Ela tinha dito que não estaria livre antes das 9. Tinha três horas à sua frente. Podia começar por recapitular tudo. A carne assada estava pronta no frigorífico. Era só ligar o forno e aquecê-la. Ela não era dada aos dotes culinários, por isso não notaria que a carne fora comprada já feita. A bavaroise de morango também. Abriu o frigorífico para confirmar a temperatura do vinho. Faltava fazer o arroz de ervilhas como antigamente via a Luísa fazer. Rezou para que saísse bem. Dizem que quando se está apaixonado tudo parece maravilhoso e, afinal, ela estava apaixonada por ele. Demorara o seu tempo... mas estava!
Ouviu um troc, troc... familiar que o irritou um pouco. Hoje não ficava nada satisfeito com a presença do seu habitual conviva. Sentou-se muito quieto e calado no sofá para que ele aparecesse. Em breve viu assomar o narizito e logo depois apareceu todo ele à espera do costumeiro presente de queijo. Jeremias, o rato. Não sabia bem porque lhe dera aquele nome mas parecia-lhe nome de rato. A sua amizade remontava aos primeiros tempos da sua estadia em Faro. Deslocado da sua cidade, num emprego novo que era a sua última oportunidade de uma vida e uma carreira como as de toda a gente, depois da longa série de falhanços, do divórcio, dos desentendimentos com a família, Jeremias parecera-lhe uma companhia aceitável e engraçada. Ocupara algumas horas da noite a estabelecer relações de cordialidade com o animal. Deixava-lhe primeiro presentes de queijo a hortas certas. Depois começara a aparecer muito quieto quando ele vinha buscá-lo e, por fim, depois de alguns meses de meticulosa paciência, conseguira que o rato viesse buscar-lhe o queijo à mão, vitória que o enchera de satisfação. Quem se poderia gabar de ter conseguido domesticar um rato?
Mas ela percebera. Ela vira nele a força interior que ele tinha e por isso se apaixonara. Não fora fácil fazê-la entender, mas fora uma vitória!

(Continua...)

Fotos: Peter M. e Francisco Garrett