Chamava-se Maria Martins. As crónicas que dela falam não a adornam com pais ilustres nem fortunas de berço. Falam de uma vida solta pelo mundo, ao sabor das inspirações. Gostava de viajar. Podemos imaginá-la soldadeira, companheira de jogral, de corte em corte pousando nas estalagens, o adufe na albarda da égua, as castanholas à distância de uma mão.
Um dia viu-se numa aflição (que muitas passava quem vivia neste modo jograleiro) e fez uma promessa: saindo salva do aperto, iria à Terra Santa, que era a peregrinação maior e mais importante que um cristão podia fazer. Salvou-se.
Um dia viu-se numa aflição (que muitas passava quem vivia neste modo jograleiro) e fez uma promessa: saindo salva do aperto, iria à Terra Santa, que era a peregrinação maior e mais importante que um cristão podia fazer. Salvou-se.
Um dia cansou-se da vida que levava. Há idades que fazem pensar no futuro e vidas que não deixam criar laços nem afectos seguros. Pensou em procurar um refúgio e uma irmandade com quem vivesse de mão dada. Decidiu fazer-se monja. Escolheu o mosteiro do Lorvão, que era mosteiro misterioso pela sua antiguidade envolta em lendas e incertezas, construído no alto de uma montanha por onde se sobe entre densa e silenciosa floresta. Mais de um dia de caminhada serra acima, como se trepasse ao céu.
Há pouco tempo tomara conta do mosteiro, Teresa, filha del-rei D. Sancho e mulher de Afonso IX de Leão (bela história a dela também, para um dia ser contada!), que a acolheu de braços calorosos. Maria encontrou o que procurara e foi vivendo feliz entre as monjas pelos anos fora.
Com o avançar da idade, Maria lembrou-se do voto que tinha feito em momento aflito e que nunca cumprira. Não podia morrer com esta falta! Confessou-a ao padre e dispunha-se a partir para os Santos Lugares, a pagar a dívida que contraíra. O padre não a encorajou. Uma viagem daquelas era coisa para demorar um ano, padecendo muitas dificuldades e perigos pelo caminho. Para as mulheres, pobres e simples como ela, que não podia viajar com grande comitiva de damas e cavaleiros protectores, como faziam as endinheiradas, a viagem podia ser fatal. Havia os salteadores de estrada, havia os turcos, havia os violadores de mulheres... Não, não era aconselhável!
Pendente a dívida, resolveu-se o problema com a comutação da penitência numa outra equivalente: durante o ano que duraria a viagem, Maria peregrinaria em volta do mosteiro. Assim foi. Preparou-se para a viagem. Despediu-se comovida das irmãs, que lhe fizeram um farnel para os primeiros dias. Pôs-se ao caminho, sempre em círculo, em volta do mosteiro.
Durante um ano cumpriu a viagem. Não falava com as outras porque estava sozinha a caminho de Jerusalém. Elas também não falavam com ela porque ela estava ausente. Às horas devidas, deixavam-lhe no caminho as refeições, que ela comia em silêncio. Quando caía a noite, procurava um lugar ao relento onde se encostava para dormir. Na manhã seguinte, retomava o caminho, sempre em círculo, em volta do mosteiro. Assim se cumpria o ano, com o cansaço que normalmente têm os peregrinos que fazem grandes viagens a pé.
Durante um ano cumpriu a viagem. Não falava com as outras porque estava sozinha a caminho de Jerusalém. Elas também não falavam com ela porque ela estava ausente. Às horas devidas, deixavam-lhe no caminho as refeições, que ela comia em silêncio. Quando caía a noite, procurava um lugar ao relento onde se encostava para dormir. Na manhã seguinte, retomava o caminho, sempre em círculo, em volta do mosteiro. Assim se cumpria o ano, com o cansaço que normalmente têm os peregrinos que fazem grandes viagens a pé.
Aproximando-se a data da sua chegada, prepararam as irmãs o mosteiro para a receber. Abraçaram-na à chegada, com grandes festejos e lágrimas de saudade. Também ela ficou feliz por revê-las e lhes falar. Depois da festa, deitou-se um pouco na sua cama, a descansar. Foram encontrá-la com um sorriso nos lábios. Compreenderam que tinha morrido feliz.
As exéquias foram de grande tristeza. Agora, sim, partia de vez Maria, a peregrina. Acabados os últimos cânticos, depostas sobre o túmulo as últimas flores, iam as irmãs recolher-se quando tocou o sino do portão do mosteiro. A irmã porteira foi assomar. Viu à porta um velho de longas barbas e chapéu de abas largas. A capa estava desbotada e suja de muita poeira do caminho. Encostava-se a um bordão e trazia uma pequena cabaça de água como usam os viajantes. Espantada pela presença de tal figura à porta de um mosteiro sem homens, em lugar que não era de passagem para nenhum caminho, a irmã porteira mandou chamar a abadessa. A que vinha?, perguntou-lhe. Visitar o túmulo de Maria Martins, disse o velho. Espantou-se a abadessa: e como sabia que ela tinha morrido se ainda agora a tinham acabado de enterrar ? Sabia que assim havia de ser, disse ele. E de onde a conhecia, à irmã Maria Martins, que há tantos anos ali entrara naquele mosteiro e nunca mais saira?
- Não dizes a verdade, madre – disse o velho – porque bem sabes que ela veio há pouco de Jerusalém e eu conheci-a no caminho e com ela viajei durante um ano e os dois juntos visitámos os Santos Lugares e regressámos pelo mesmo caminho. E disse-me ela que havia de vir aqui despedir-se das irmãs e que nos havíamos de encontrar de novo se eu a viesse procurar onde ela havia de estar à minha espera. E cá estou.