domingo, 28 de outubro de 2007

CANDEEIRO DE ESQUINA



Quando acordou, perto da hora do almoço, lembrou-se de que era sábado e as calças brancas tinham ficado para vincar em casa da Maria da Graça. Boa rapariga, a Graça, se não fosse a ajuda dela... Desde que a mãe morrera nunca mais tivera quem lhe vincasse as calças e lhe fritasse as pataniscas da mesma maneira. Não queria agora pensar nisso porque não era ainda sem dor que sentia a sombra da mãe a acompanhar-lhe os passos na casita de quarto-e-sala em que haviam vivido toda a vida. Em sua lembrança continuava a renovar de cravos brancos o pequeno altar da Senhora da Saúde em cima da cómoda do quarto, para o qual se mudara ao fim de muitos anos a dormir no divã da sala. Na cama que fora da mãe e onde agora acordava todos os dias, sentia-se abraçado e em paz, como no dia muito distante da sua infância em que vira o pai sair para sempre pela porta da entrada.
Fez a barba com esmero, pendurou ao pescoço a grossa corrente de ouro com os amuletos preferidos, e rematou em abundância com o after shave que comprara em promoção na mercearia do vizinho Américo. Olhou-se ao espelho. Talvez já não se pudesse dizer facilmente que fora o rapaz mais atrevido do bairro, e bem-parecido, e disputado pelas moças porque sabia segredar-lhes aos ouvidos melhor do que os outros. Os anos tinham passado quase sem dar por isso e as noites bem regadas traziam com a casa dos sessenta as suas indeléveis marcas. Mas continuava a pensar nos detalhes da aparência, na camisa de riscas com colarinho branco engomado (ai a Graça!...), no colete azul e no risco irrepreensível do cabelo, que se mantivera inesperadamente farto. Não era como os rapazes novos, de calças de ganga esfarrapadas e t-shirt (no seu tempo chamava-se blusa...) desbotada.
Saíu de casa confiante, cumprimentou a Rosa Maria com a galhardia do costume, atirando ao ar um dos seus melhores piropos, que a fez encolher os ombros e sorrir. O dia não era para pressas, por isso encaminhou-se para a Rua do Vigário, a pensar na conversa agradável que gastaria devagar na tasca do Zé das Febras com outros rapazes do seu tempo. Se fosse há uns anos, seria de outra maneira. Nunca lhe faltara ao sábado uma moça para levar pelo braço a ver as montras da baixa e a marcar lugar na pensão Moderna (que a mãe não transigia nessas coisas!). Agora, os tempos eram outros e sabia bem que não podia ir além da sua colecção de piropos, a melhor do bairro! Até podia ganhar um concurso se fizessem um na televisão!
Às vezes tinha uma certa pena de não ter casado, de não ter criado uma família, netos que lhe enfeitassem os últimos invernos. Deixara partir, há muito tempo atrás, a Ana Maria, com um filho seu na barriga... Nunca mais soubera nada dela...
Pela segunda vez nesse dia, afastou os pensamentos tristes. Tinha outras coisas que lhe enchiam a alma. Nem tudo na vida são esposas e filhos.
Esgotou a conversa da tarde tão esquecido de tristezas que, quando deu por isso, anoitecia. Voltou à sua rua, a bater à porta da Graça, e recebeu nos braços as calças brancas e vincadas. Depois de vestidas e de novo na rua, sentiu-se verdadeiramente feliz.
De mãos nos bolsos, trauteando baixinho, dirigiu-se para a rua de todas as noites. Era ali que vertia os suspiros para os transformar em ais sentidos que partiam como setas ao coração do público. Ali, no Candeeiro da Esquina. Já podia ouvir à entrada os acordes das guitarras. Cantaria a sua série de três fados. Encheu o peito e entrou. Ali estava a sua paixão. As luzes baixas, o povo atento, as raparigas de xaile traçado, o lugar em branco entre os guitarristas, reservado para ele. Ali sentia-se rei, com poder de fazer chorar ou sorrir, de despertar a saudade e encantar os namorados.
Relanceou o olhar pelas mesas. Havia gente nova, que nunca tinha visto. Um grupo que não era do bairro, gente com ar de fina, já todos um pouco tocados do bom tinto da casa. Público novo era sempre bom!
O Eduardo, o mestre de cerimónias, chegou-se aos dois candeeiros vermelhos que, como balizas, reservavam o lugar dos artistas e anunciou-o:
- E agora, meus amigos, silêncio, por favor! Na minha presença e na vossa... Armando Fadista!
Era a sua deixa. Ergueu o peito, fechou os olhos, ombros para trás, e atacou o fado da igreja de Santo Estêvão com a alma toda.
Nem três versos o deixaram cantar antes de começarem os murmúrios. O que é que se passava? Abriu os olhos e viu o grupo de visitantes finos em alegre troça. Riam-se dele! Não acusou o toque e continuou a cantar. Os nervos, porém, descompassaram-lhe a voz. Nunca tal lhe tinha acontecido! Riam-se de quê? Como é que não respeitavam o sagrado silêncio do fado?! Alguns gritos soaram claros: «Já chega!», «Venha outro!», «Cantas mal!». Achavam que cantava mal! Ele, Armando Fadista, filho da Maria Eugénia, que fora, no seu tempo, a melhor cantadeira de Alfama! Como se atreviam!? Bonecos apalhaçados, sabiam o quê do Fado?
As gargalhadas ouviam-se na sala. Armando sentiu a raiva concentrar-se-lhe na garganta e transformar-se num balão de água prestes a explodir-lhe nos olhos. Acabou o fado com custo e teve coragem para os encarar de frente:
- Eu quando não gosto aplaudo à mesma! Podem não gostar mas respeitar!
E saíu, muito direito, o corpo franzino aprumado, apesar das pernas bambas a fazerem perigar a rectidão do vinco da Graça!
Cá fora encostou-se por momentos ao candeeiro que marcava a esquina do restaurante. Não deixaria as lágrimas cair! Pediu ajuda às pedras ásperas da calçada e encaminhou-se para a sua cama, onde os braços da mãe, feitos de sombra e amor, o embalaram.