quinta-feira, 5 de julho de 2007

Fome de Poesia

Ao longe divisou enfim uma luz clara. Sentia-se exausto da longa caminhada e a fome atormentava-o há tanto tempo que quase esquecera aquela sensação de lacuna, de brancura nas ideias, de falta de consistência. À sua frente, tantas palavras alinhadas, negras e perfeitamente justificadas em margens impecáveis pareciam-lhe um sonho. Interrogava-se sobre como teria conseguido chegar ali, àquele paraíso. Tinha a memória fraca e a respiração pesada do cansaço mas vibravam-lhe entre os olhos umas maiúsculas gordas e redondas que lhe faziam nascer saliva na boca. Talvez delirasse por causa da fome e todas aquelas excelentes colunas desaparecessem quando lhes tocasse. Experimentou fechar os olhos e, quando os reabriu, pôde sentir o odor picante que delas emanava. Podia prever-lhes umas nuances ácidas, delicadamente temperadas com apetitosos toques de dourado e de rubro. Ah, as rubricas! Perdia-se por elas! Avançou, apesar da vista turva e enevoada.



Deu a primeira dentada e suspirou consolado. Estava no ponto! Instalou-se confortavelmente para continuar a refeição. Comeu primeiro todos os títulos de capítulo, depois provou a numeração das páginas, que abandonou rapidamente para atacar decidido vinte estrofes de seguida. Não queria exagerar mas, saltando mais para trás, não pôde deixar de provar também uma introdução magnífica, decorada com traços filigranados nas margens. Obra requintada, de paladar digno de um rei! Por fim, reservou para sobremesa umas notas de rodapé, em corpo 9, delicadíssimas.
Reclinou-se satisfeito e pensou para consigo que aquele era um belo sítio para viver. Não lhe faltariam refeições como aquela por muitos anos e poderia até pensar em constituir família. Olhou para o que restava do seu maravilhoso repasto, encostou-se na delicada carneira da encadernação e adormeceu, embalado em belos sonhos.