sábado, 19 de dezembro de 2009

Crónica de boas intenções

Nesta quadra de paz e amor, juro que queria mesmo escrever sobre coisas bonitas que não suscitassem polémica. Imaginar os meus amigos visitantes a lerem-me de lágrima ao canto do olho e a incluirem-me nos seus votos benévolos de felicidade para os próximos 365 dias.



Para facilitar a inspiração, instalei-me na esplanada da minha rua, cheia de sol e de folhas de plátano cor de mel, onde as pombas vêm colher as migalhas sobre as mesa. Cenário propício. Mas não consegui ficar mais do que o tempo de beber um café. O termómetro do outro lado da rua marcava 6º e comecei a tremer de frio. Lembrei-me de que tenho de ir às compras. Não tenho camisolas suficientemente quentes para estas temperaturas inusitadas. Estava habituada a invernos mais amáveis. Parece que a culpa é da poluição humana, que está a desequilibrar o termómetro. Mas também leio nalguma imprensa que não é verdade e que há cientistas que têm dados que contrariam as "teorias catastrofistas”. Gostava de saber quem são esses cientistas e quais são esses dados mas isso não dizem.




Felizmente os políticos estão lá em Copenhaga – pensei, animada – enquanto subia as escadas a correr (para aquecer) e um deles até ganhou o Nobel da Paz, por isso as coisas vão-se resolver.




Liguei a televisão e estava a dar uma reportagem na Noruega, onde um agricultor dizia que por ele tudo bem, o aquecimento global dava-lhe jeito, estava farto de tanto frio e já podia cultivar alfaces e laranjas, coisa que o gelo norueguês não lhe tem permitido. Acha até que o aquecimento vai trazer mais turistas à Noruega.



Por essa altura já tinha ligado o aquecimento e as mãos começavam a desentorpecer. Mudei de canal para ver qual ia ser a temperatura máxima. A pivot das Notícias estava com cara de caso e contou que afinal não havia avanço nenhum nas negociações de Copenhaga e que ficava tudo adiado por mais um ano porque a China e os Estados Unidos estavam de acordo em não assinar nenhum acordo. Para chegarem a essa conclusão – pensei eu com os meus botões – escusavam de ter gasto tanto dinheiro e emissões poluentes a irem lá. Não podiam ter mandado um email?





Mudei outra vez de canal mas as notícias não eram melhores. Fiquei a saber que, no próximo ano, vão subir-nos o preço da electricidade. Paciência, suspirei, é a crise... teremos de gastar menos... Mas logo a seguir fui surpreendida pela explicação: parece que, como este ano consumimos menos electricidade, a EDP perdeu receitas e assim vê-se na necessidade de subir os preços. Então não é o que nos pedem, que gastemos menos? Quer dizer, portanto, que, quanto mais pouparmos e menos recursos gastarmos ao planeta mais caro nos fica?!?

Desculpem lá... a tal escrita, sobre coisas bonitas e comoventes, vai ter de ser adiada... talvez no próximo ano, quem sabe?...











domingo, 13 de dezembro de 2009

Manifesto Europeu

Vem este manifesto a propósito de uma conversa de amigos onde se discutiam diferenças civilizacionais e se declaravam as maravilhas alheias que nós, europeus, admiramos.

Muito a propósito, acaba de ser divulgado um estudo de cientistas da Universidade de Berkeley (http://dn.sapo.pt/inicio/ciencia/interior.aspx?content_id=1443174) sobre o factor determinante na evolução da espécie humana: a generosidade. Não a lei do mais forte, como deduziram os seguidores de Darwin, não a competição nem a eliminação dos mais fracos mas, pelo contrário, a capacidade de proteger os mais frágeis. A guerra não é, portanto, uma contingência natural do homem, à qual temos de nos conformar mesmo que não gostemos dela. Foi, portanto, a cooperação (das mulheres na recolha de alimentos e na criação das proles e dos homens na caça dos mamutes) que garantiu a sobrevivência dos grupos e a transmissão dos genes daqueles que, tendo menos músculos, sabiam como voltar a acender o fogo quando ele se apagava ou sabiam contar histórias ao serão para afastar o medo dos animais selvagens.




A ideia de que há civilizações mais evoluídas do que outras e que, por serem mais evoluídas, têm alguma coisa a ensinar às outras, é uma ideia que a velha Europa ocidental ainda alimenta em segredo, cheia de vergonha de o proclamar em voz alta. Compreende-se. Por causa dessa ideia, justificada por razões que assentavam na lei do mais forte, praticou a Europa muitos males: conquistou, explorou, sujeitou à força, destruíu.



Mas voltemos os projectores para o novo factor determinante da evolução. Qual é a civilização que hoje mais protege os não musculados? Onde nasceu a declaração dos direitos do Homem e os da criança? Onde se reconhece às mulheres igualdade de direitos? Quem está mais à frente na protecção dos deficientes, dos animais, no reconhecimento dos direitos dos homossexuais? Onde se elege como valores fundamentais a igualdade de oportunidades, o direito a pensar e falar livremente, a igualdade do cidadão perante a lei? A resposta é clara: na Europa ocidental e nos seus filhos mais legítimos (Estados Unidos, Canadá, Austrália, Israel).


Outras civilizações fascinam hoje a velha Europa, pela sofisticação da sua arte, pelo exotismo das suas culturas, pela emergência do seu poder económico... E os europeus estão naturalmente cansados da sua velha casa, que lhes parece monótona e fora de moda. E sempre gostaram de viajar (doutro modo não teriam tantos filhos) e de ver paisagens diferentes. Por isso encantam-se com as modas da manga japonesa, do budismo indiano ou da dança do ventre árabe. Muito bem. Tudo isso são distracções divertidas. Mas nada me levaria a render-me de admiração por terras onde faltam os valores fundamentais que fizeram da civilização ocidental a mais evoluída e admirável do mundo.


Estamos longe da perfeição? Estamos. Mas também estamos na linha da frente para lá chegarmos. Temos um passado cheio de atrocidades? Temos. Mas enquanto elas são o passado de que nos envergonhamos, para as outras civilizações são o presente de que se orgulham. Nem sempre pomos em prática os ideais que proclamamos? Nem sempre. Mas não desistimos deles como ideais e lá vamos tentando. Temos muito de que nos orgulhar e as outras civilizações muito que aprender connosco.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Condição amorosa


O amor, para ser amor, é incondicional. Dizem-me. Não acredito.

Mas se o digo, dizem-me que o digo porque nunca amei a sério. Lá está: para ser amor... tem de ser, senão não é amor.
Pois, mas quem o diz fala do amor dos outros e não se pode falar do amor dos outros, porque o amor não é uma célula no microscópio, que se possa observar à distância, vendo os outros padecê-lo, e nós, objectivos, a injectar-lhe reagentes cá de longe. O amor, para se falar dele, tem de ser daquele que se sente por dentro.

O amor – dizem-me também – não é paixão, nem sexo, nem nenhuma dessas afecções dos sentidos com reacções químicas e feromonas e alterações do ritmo cardíaco.
O amor – insistem em dizer – é outra coisa, que vem depois, quando as coisas correm bem, e que pode nascer de onde antes não o havia e que se rega, como uma flor. Disso a ciência não consegue dizer coisa que se aproveite, embora tentem uns senhores que se apresentam como psicólogos – dos quais desconfio muito. Mas esses, para manterem o crédito e poderem continuar a dar-se com a gente “séria” da ciência, preferem não falar de amor. Falam de afectos, que têm um ar mais rigoroso e distante, apesar de o seu ascendente, o affectus latino, significar estado de alma, disposição de espírito, sentimento, paixão ou vontade, tudo coisas vagas e objectivamente inapreensíveis.
Voltamos, portanto, ao amor. E de amor mesmo, com a palavra e tudo, só falam os poetas e os romancistas. E os heróis do cimena e do palco. Tudo ficção, tudo mentira. Não sei como fazem os actores para tão facilmente dizerem “Amo-te”, porque é uma palavra que ninguém diz facilmente, olhos nos olhos com alguém e sem se rir. Dizemos “Gosto de ti”. Alguns miúdos dizem “Curto-te bué”. Tudo eufemismos para fugir à palavra, pesada, que temos de dizer arredondando os lábios como se chupássemos um refresco por uma palhinha. Deve ser por isso que não a dizemos, para não parecermos ridículos. Não parece coisa de gente crescida.


Mas quando se trata de falar do amor generalizando, é fácil. Temos muitas frases prontas: “o amor não escolhe idades”, “o amor é cego”, “não há amor como o primeiro”, “quem ama perdoa”, “quem o feio ama bonito lhe parece”. Ah! E “o amor é incondicional”!
Também temos uma moral do amor. Dizem-me que “o amor é para toda a vida”. Mas também me dizem que devemos desamar quem não nos retribui o amor. Por aqui já se vê que o amor também está sujeito a ambiguidades éticas e que, se calhar, quem tinha razão era o Luís, que dizia que o amor é paradoxal (lembram-se?... o contentamento descontente, ferida que dói e não se sente e por aí fora...).
Toda uma ciência sobre o amor, afinal. Guardada no bolso, embalada a vácuo, pronta a usar como um lenço de papel perfumado com alfazema, em qualquer ocasião. Basta que o amor apareça. Sem condições. Amamos um mentiroso. Para toda a vida ou apenas se ele nos retibuir o amor?

sábado, 14 de novembro de 2009

Teias da memória

Depois de um longa tarde de espanador e esfregona epicamente em punho, sentei-me no meu sofá, confortavelmente, e puxei para mim o último romance barato publicado pela Sábado: Susan Sontag, O Amante do Vulcão.
Belo fim de tarde, sem ponta de pó à minha volta. Ah! que merecido descanso! Relanceei os olhos pelos cantos do rodapé e pelas sancas do tecto, satisfeita.

Mas... o que seria aquilo, ali no esconso vértice da parede mesmo à minha frente, junto à janela? Uma teia de aranha?! Como é possível, depois de tanta batalha?

E eis que me embala a voz da minha avó, por entre as chamas da lareira.


Era uma vez uma mulher que tinha duas filhas, e criou-as no asseio e na poupança para que não lhes faltassem bons partidos nem boas casas.
Quando elas casaram, a mãe disse-lhes:
– Daqui a um ano vou visitar-vos e quero ver todas as varreduras do chão e todas as lavaduras da loiça de um ano inteiro!
As moças lá foram, cada uma para o seu destino. Ao fim de um ano, a mãe foi visitar a primeira filha. Encontrou-a com o seu marido e uma criança ao peito.
– Onde estão as varreduras do chão e as lavaduras da loiça? – perguntou.
– Venha, minha mãe!
E mostrou-lhe um belo par de galinhas, que tinha alimentado com as migalhas que tinham caído no chão, e um porco engordado com os restos deixados na loiça.
– Muito bem, minha filha! – disse a mãe – vejo que és uma rapariga esperta e trabalhadora!
A seguir foi visitar a outra filha. Bateu à porta chamando por ela.
– Minha mãe? – gritou a filha lá de dentro – venha de pedrinha em pedrinha, não se atasque!
A casa estava submersa em lixo e a filha sentada num canto a chorar sozinha porque o marido a tinha abandonado. Quando a mãe entrou, disse-lhe ela:
– Vê, minha mãe, como fiz tudo como me disse?...


Os contos populares são umas coisas perversas e cruéis. Porque contavam estas coisas às crianças? Abanei a cabeça suspirando, instalei-me melhor no sofá e abri o livro.

Espera lá ... para que poderá servir uma teia de aranha?







quinta-feira, 29 de outubro de 2009

São flores...

- Onde vais, Maria, com esse ar tão contente?
- Ora, vou ali adiante, porquê?




- E o que levas no regaço, que parece tão cheio e pesado?
- Levo umas flores mortas, porquê?



- Flores mortas? Assim tão pesadas?
- Se não fossem tão pesadas não tinham caído da árvore!




- Hum... Parece-me que me enganas, Maria. Não será ferro o que aí levas?
- São flores que muito me custaram a criar. Vou fazer com elas um tapete para descansar os meus pés.



sábado, 12 de setembro de 2009

A VIAGEM. 4. Olhos.

Túndalo não saberia dizer quanto tempo levou na subida. Esqueceu-se de quase tudo enquanto caminhava. Nem da presença do anjo se dava conta, a menos que ele o tivesse abandonado finalmente, o que não o inquietava nada. Quanto mais subia maior era a claridade que o iluminava e o único desejo que sentia era o de encontrar não sabia o quê, qualquer coisa que parecia faltar mas não se podia definir. Como uma sede que não era de água ou uma fome que não era de pão ou uma paixão que não era de braços.
Por fim vislumbrou claramente uma alta muralha que circundava o topo da montanha, encerrando o cume como um colar que debruasse o colo de uma virgem. Mas não eram pedras comuns, as que formavam a muralha, eram peças de jaspe intenso. Não ficou surpreendido ao encontrar na muralha uma porta nem que a porta não estivesse fechada como se estivessem à sua espera. Era de ouro maciço mas leve como uma pena, deixou-o passar sem nenhum entrave e Túndalo achou-se do lado de dentro. Abriu os olhos e viu. Era e não era um jardim. Era e não era primavera. Era e não era feliz. As flores que se estendiam por campos sem fim tinham cores estranhas e formas que nunca vira. Os lagos tinham os mais puros reflexos de cristal e o céu um azul praticamente impossível. Mas quando estendeu as mãos para colher algumas pétalas, elas atravessaram-lhe os dedos e não se deixaram cair. Mergulhou a mão em concha na água mas ela nem o molhou. Sorriu porque não tinha sede e não fazia mal. Não sentia a alegria que deveria sentir, porque não se lembrava de nenhuma tristeza. Começou a andar e em breve encontrou muitos como ele, mas vestidos de branco, sentados no chão.Escutavam uma música parecida com o assobio do anjo e nada mais lhes despertava a atenção. Avançou até encontrar um bom lugar para se sentar, amparado no tronco de uma árvore. Sentou-se. Aquele parecia ser o lugar mais alto da montanha, o pico do cume, de onde já não se podia subir mais. Os olhos abriram-se-lhe sozinhos e viu. Viu todas as razões, todas as coisas para ter certeza, todos os modos de ser e de fazer. Soube a resposta a todas as perguntas e todas as histórias do princípio e também as do fim. Viu todas as regras que fazem mover coisas e todos os movimentos que se movem sem regras. Soube todos os quandos e comos e porquês. Os olhos cresceram-lhe até que todo o corpo mais não era do que olhos. E soube que era bem.

- Túndalo... - ouviu chamar, em voz doce. Não respondia. Não tinha boca, só olhos.
- Túndalo... - repetiu a voz. Sem se mover, acabou por perguntar:
- O que é?
- Temos de ir - disse a voz.Os olhos semicerraram-se e subiram-lhe ao rosto de novo, a ocupar o seu lugar. Contrariado, virou-se para ver quem chamava. Era o anjo, claro! Tinha de ser o anjo!
- O que queres? Deixa-me estar! Já cheguei!
- Não - disse o anjo - Tens de voltar, anda!
- Que queres dizer com voltar? - perguntou espantado - Não me trouxeste aqui? Não é aqui o meu lugar? Não estou já cá?
- Não - disse o anjo, estendendo-lhe a mão - Foste trazido mas não é ainda altura de ficares. Tens de voltar à tua casa e refazer tudo o que fizeste até hoje.
- O quê ?! Mas então ...
- Vamos! Voltarás mais tarde, daqui a muito tempo. Ou não...
O anjo obrigou-o a levantar e ainda mal tinha dado dois passos contrafeitos e já via fechar-se-lhe nas costas a porta da muralha. Não pudera dizer mais nada. Já tudo tinha ficado para trás. Ao terceiro passo estava de volta às ruas da sua cidade e amanhecera. Sentiu frio e uma incontrolável necessidade de dormir. As vendedoras do mercado arrastavam penosamente as suas cargas e passavam cavaleiros martelando as pedras das ruas. As casas tinham um tom pardo e húmido, enfileiradas obliquamente até desembocarem na sua casa, lá ao fundo. Dirigiu-se para lá e entrou. Os servos acorreram a recebê-lo e trataram de o conduzir ao leito. Túndalo dormiu sem acordar durante três dias seguidos. Chamaram o físico para que lhe tomasse o pulso mas nesse mesmo dia voltou a abrir os olhos, sorriu, e pediu alguma coisa para cortar o jejum.


- Tive um sonho - comunicou - foi bonito, depois de ter sido muito assustador. Se pudesse saltar a primeira parte, bem gostava de o sonhar outra vez.


segunda-feira, 31 de agosto de 2009

sábado, 27 de junho de 2009

A VIAGEM. 3. Terra.

Há já várias horas que caminhavam por entre um bosque cerrado. Pelo menos as horas passadas pareciam muitas mas, como Túndalo sentia que o cansaço se lhe aliviava a cada novo passo, pensou para si que talvez ele não soubesse nada acerca de horas ou talvez as horas sempre tivessem sido diferentes do que lhe parecia. A verdade é que a escuridão verdejante em que caminhavam não dava sinais de nascer nem de pôr de sol e todo aquele tempo parecia demasiado para uma só noite. Mas seria a noite, de facto, uma verdade consistente? - pensou Túndalo. Seguiam calados e, sem saber porquê, não lhe apetecia interrogar o anjo sobre todas estas dúvidas que lhe acudiam ao espírito.

Por fim, a caminhada desembocou numa ampla clareira. As árvores foram repentinamente substituidas por um chão raso e nu, vermelho e seco, que se estendia até muito longe. Túndalo estacou e, com ele, o anjo. E agora? Que fazia ele ali, naquela imensa eira barrosa que não levava a lado nenhum?
- Onde vamos? - perguntou ao anjo.
- Porque paraste? - perguntou o jovem luminoso.
- Mas onde queres que vá? - ripostou Túndalo, com um gesto enfastiado - afinal o que pretendes com isto?
- Túndalo, Túndalo... - riu-se o companheiro - não aprendeste nada? Julgas que se pode parar a meio do caminho?
- Mas porque não podemos ficar aqui na orla do bosque? Ao menos haverá frutos ou sementes para comermos e talvez a manhã nos traga um pouco de orvalho que nos mate a sede. Aí por onde vais só vejo ermo e secura...
- Tens fome ou sede?
- Não, ainda não, mas vou ter.
- E se não tiveres, porque terás ficado aqui? E de que manhã estás tu a falar?
- Bem, acabará por amanhacer, mais cedo ou mais tarde, não? - atirou-lhe Túndalo.
- Vá lá... - murmurou o rapaz de branco sem sinal de ter entendido a ironia - não queres resposta para as tuas perguntas? Tens de vir...
- Mas porque não me respondes aqui?!
- Não te impacientes. Olha lá ao fundo, por trás daquela nebelina.
Túndalo apurou os olhos na direcção apontada. Muito distante conseguia ver uma nuvem parda que parecia pairar sobre os vapores avermelhados daquele longo e rubro deserto.
- Só vejo uma nuvem. Que tem ela de especial?
- Tens de ir mais perto para saberes. Tens de continuar a andar.
- E que me interessa isso? Quero lá saber do que está por trás da nuvem!
- Como sabes que não queres saber se não sabes o que é ?
- E como sei que quero?
- Chegando mais perto. É a única forma. Vamos!


O anjo parecia determinado. Abandoná-lo-ia se ele se deixasse ficar? Provavelmente. Ficar ali sozinho é que não. Como faria para voltar para casa? Pensar na sua casa fez-lhe de repente chegar as lágrimas aos olhos. A sua boa cama de lençóis de linho, o seu dossel de seda que lhe embalava o sono, os risos dos amigos povoando a mesa, a alegria das canecas girando de mão em mão... Tinha de voltar para casa! Portanto, restava-lhe seguir em frente.
Começou a andar adiante do anjo, que sorria da sua pressa. Começou a contar os passos, para calcular mentalmente quanto faltaria para acabar de atravessar o ermo vermelho. De cabeça baixa, punha metodicamente um pé à frente do outro.
O anjo começou a assobiar, fazendo-o virar a cabeça de espanto. Que bem que ele assobiava! Parecia uma flauta que o seguia e lhe elevava os passos. Nunca antes tinha ouvido uma música assim, tão suave e alegre ao mesmo tempo! Não se atrevia a dizer uma palavra, enlevado na melodia, e acabou por se esquecer de contar os passos. Não sentia fome, nem sede, nem cansaço. Aliás, não sentiu nada além de uma espécie de felicidade que lhe vinha do assobio do seu companheiro, até que, ao longe, por entre a névoa distante, julgou divisar algumas formas. Que seria aquilo? Parecia brilhar no alto de uma colina e clareava como a manhã mais ensolarada que alguma vez vira.




Não fazia ideia de quantos passos dera afinal mas a verdade é que se abeiravam agora da base da colina e a nuvem que a envolvia ocultava-lhe apenas o topo, deixando ver uma encosta florida de margaridas e lilases. Ou seriam outras flores? A cor estava certa mas nunca vira flores tão grandes e tão viçosas, suavemente dobradas por uma brisa fresca que soprava de leste. Não dera por nascer o sol mas a verdade é que ele se estendia agora por todo o lado, brilhando nos olhos do anjo como pérolas.
Que jardim seria aquele? E o que esconderia a nuvem lá em cima? Seria longa a distância até ao topo? Tinha de ir ver !


- Queres ficar por aqui ? - perguntou o anjo, sentando-se.
- Aqui?! Nem penses! - respondeu Túndalo - Vamos subir!
- Ah! – exclamou o anjo - pensei que talvez quisesses parar, podíamos descansar um pouco entre estas flores...
- Mas tu estás cansado?! Que anjo me saíste! Eu estou muito bem, vamos lá, levanta-te!
- Está bem... - disse o anjo, estendendo-lhe a mão - ajuda-me aqui! Ainda tenho de procurar o melhor caminho para subirmos.
- Então, então, rapaz... - disse Túndalo, puxando-o pela mão a apontando uma vereda que se escondia sob uma cascata de flores - não estás a ver ali? É o caminho.
- Bom... vamos lá então.
Pintura: o Salvador.
(Insiste em continuar mas há-de acabar-se-me na próxima, juro! ...)