sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Os pecados do Dr. Jorge

O Dr. Jorge sentou-se à minha frente, no sofá de couro preto do seu escritório, depois de me ter cumprimentado com toda a cordialidade que conseguiu tirar dos bolsos. É baixinho e magro, dentes muito brancos e certos, com os seus sessenta e muitos bem vividos. A face bem escanhoada, os óculos de aros finos e o sorriso sempre pronto matar-nos-iam quaisquer resistências se não fosse o nariz comprido e muito afilado, que afaga constantemente, num tique de cálculos intermináveis que de vez em quando lhe semicerram os olhos. O Dr. Jorge é filósofo. Ou foi. Agora que se reformou, abriu uma editora, que gere num pequeno escritório coberto de papéis, livros e outros materiais desordenados que lhe dão um ar de toca.
Depois de tratado o assunto que nos reuniu, o Dr.Jorge pendeu para a melancolia e a conversa derivou para as enorme dificuldades que os editores têm em Portugal para subsistir e para prestar um alto serviço à nação. Conhecedora desse fado, resolvi mostrar compreensão e ir assentindo com a cabeça. Que as boas gráficas são caras, que as distribuidoras levam quase 50% dos custos, que as feiras de divulgação exigem um investimento pesado... E tudo para quê? Para os portugueses não comprarem livros! Para os estudantes lerem nas miseráveis fotocópias que depois vão para o lixo! E que este país não tem a cultura do livro! E que os professores são os primeiros a emprestar os seus livros para serem fotocopiados! E agora até na internet há livros digitalizados! Assim como é que os pobres editores hão-de sobreviver?!? E pousava os olhos com tristeza na capa de uma das suas últimas publicações...
«Claro!, claro!», fui-lhe dizendo, cheia de caridade e balançando a cabeça, «Olhe, Dr. Jorge, deixe lá, pode ser que o sacrifício seja aceite para desconto na remissão dos seus pecados!...». Sorriu com a minha compreensão e afagou a capa do livro, em cuja contracapa se viam claramente os logótipos das duas instituições culturais que tinham financiado a publicação.
Despedimo-nos cordialmente e saí para a rua. Não resisti a passar a mão terna e caridosa sobre a porta do carro de alta cilindrada do Dr.Jorge, estacionado à porta, com os seus estofos em couro preto a condizer com os do escritório.



Fotos: A.M.Pinto da Silva e Jea

domingo, 16 de setembro de 2007

Há viagens que se fazem por lugares quentes, longos e claros, como uma lareira no Inverno, quando não é inverno.
Escuto os passos a ranger e os dedos dos pés descalços procuram apoio firme e solene nas raízes.
Olho em volta. Poiso a mão na paisagem como fazem certos pardais inquietos.
Parto de novo, em frente, saltando ao pé coxinho como quando as fitas saltavam nos cabelos e vencia aeroplanos de giz.
Há poucas distâncias a percorrer, afinal.
Reencontramo-nos sempre com as nossas próprias pegadas, ainda frescas, e surpreeendidas por nos verem de novo.






sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Receita de Sorte

Pegue num trevo, numa rifa e numa chávena de chá e sente-se calmamente no seu sofá preferido. Descalce os sapatos para se sentir mais à vontade. Pode pôr no ar uma música calma desde que com o volume não muito alto. Beba o primeiro golo de chá, aspirando o aroma suavemente.

Abra a camisa e procure no peito o rasto da sua alma. Quando a encontrar, retire-a com cuidado e coloque-a na mão direita. Beba o segundo golo de chá. Observe o trevo e conte exactamente o número de folhas que encontra. Se forem quatro, sorria e coloque o trevo na parte central da alma, assegurando que todas as folhas ficam dispostas com aspecto liso e fresco. Se só tiver encontrado três folhas, faça uma pausa. Beba o terceiro golo de chá. Retire um pouco de massa da sua alma, molde uma folha e cole-a no trevo. Proceda então como acima descrito, sorrindo e bebendo novo golo de chá.


Pegue na rifa e comece a derenrolá-la pacientemente. Pode interromper a operação para beber os últimos golos de chá. Quando a chávena ficar vazia, inspeccione o fundo. Com o dedo, faça o melhor desenho que souber com as borras. Leia finalmente o que diz a rifa e saia de casa.
Fotos:João Santiago, Grendel e Luís Azevedo



quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Pílulas para o Inverno

O senhor do Telejornal diz que o Verão está a acabar. Diz que vem aí a chuva, que apagará os incêndios e que rolará na nossa janela como um rio cinzento. Diz que tamborilaremos os dedos de impaciência à espera que passe e espreitaremos as nuvens por entre pestanas pesadas.
O senhor do Telejornal diz que os sindicatos pedem aumentos de 3,5%. Diz que sonharemos 3,5% mais com uma semana no resort da Inhaca. Diz que por fim encolheremos os ombros com um suspiro, porque afinal já sabíamos...
O senhor do Telejornal diz que há meninas de olhos cor do céu perdidas pelo mundo, que deviam todos os dias brincar aos castelos na areia. Diz que o mundo é cruel e que apertemos o coração com cordões de seda para não o deixarmos cair do peito.

Parece que vou ter saudades do meu barco, este Inverno. Guardei umas pílulas para a saudade.
Fui ao baú e tirei cinco: