sexta-feira, 28 de março de 2008

A TORRE

Houve tempos em que as histórias se contavam para proveito e exemplo dos que as ouviam. E havia uma que ensinava aos jovens mancebos como deviam precaver-se das mulheres, seres de desconfiar porque há nelas uma maneira de lhes atalhar o raciocínio que os deixa sempre sem palavras. E reza assim.

Era uma vez um rapaz que queria casar. E como era jovem prudente e avisado, antes que casasse, foi pedir conselhos a um velho sábio. E o velho disse-lhe:
- Cautela, meu filho, com as mulheres! Farás assim: manda construir uma torre mui alta e estreita e só com uma fresta por onde entre a luz e só uma porta de que guardarás sempre a chave. E, logo que cases, fecha a tua mulher dentro dela e não a deixes sair nem convides nunca visitas para a tua mesa.


O rapaz assim fez. A mulher, logo que viu o sítio onde ia morar e o viu sair de manhã e levar a chave que trancava a porta, encostou um banquinho à parede e assomou à fresta. E, quando o marido não estava, passava todo o seu tempo na fresta, a ver quem passeava na rua. E ali viu passar um mancebo mui formoso que se pagou do seu bom parecer e todos os dias conversavam naquela fresta.

A mulher começou a pensar como conseguiria chegar à chave e, vindo o marido à noite, ela tratava-o mui bem e dava-lhe comida salgada e muito vinho sem restrição. E, logo que ele caía de sono, ela tirava-lhe a chave e saía da torre a ver o seu amigo. O marido, que era prudente e avisado, começou a estranhar o bom trato da mulher e o vinho que ela lhe dava e um dia fingiu que bebia mas deitava fora o vinho e fingiu que adormecia e deixou-a tirar-lhe a chave. E logo que ela saíu, ele trancou a porta por dentro e pôs-se na fresta à espera dela.

Quando ela voltou e quis entrar e deu com a porta trancada, ele gritou-lhe da fresta:
- Ó má mulher! Nem fechada numa torre tu deixaste de achar modo de fazeres teus enganos? Ficarás aí fora e, quando for manhã, mandarei chamar os teus parentes e lhes direi que má mulher tu és e como saíste de noite a pecar com um qualquer!


Percebendo ela que dali lhe poderia vir a morte, correu para junto de um poço que estava perto e disse-lhe:
- Antes que isso faças, eu me atirarei neste poço e tu darás conta da minha morte aos meus parentes!
E agarrou numa grande pedra e atirou-a para dentro do poço.


O marido, que não via nada porque estava escuro mas ouviu o barulho da queda, com medo de ser responsabilizado pela morte da mulher saíu da torre a correr para a salvar. Assim que ela viu a porta aberta, correu para dentro da torre, trancou a porta por dentro, subiu para a fresta e gritou-lhe:
- Ó mau marido! Amanhã mandarei chamar os meus parentes e vou mostrar-lhes como tu passaste a noite fora, como fazes sempre, a dormir com as más mulheres, e me deixas aqui sozinha nesta torre. E eles te acusarão e me levarão de volta para a minha casa!



Moral da história: Se te vires numa torre de pedra, procura outra para atirares a um poço.






quinta-feira, 20 de março de 2008

Passagens

Está na hora. Passaram as luas necessárias.



Chegaram as coisas efémeras
mas de eterna beleza no instante em que as olhamos.


Já espreitam os frutos da intensa inevitabilidade.

Soa-nos o vento a desvanecer o verde pino
que um rei cantou (Ai, frores...).


Pomos os óculos escuros
porque as cores são intensas e brilhantes.



Mandamos caiar de novo os muros.
Ou plantar de novo as paredes?


Sentamo-nos e estendemos a mão,
os cálices estão postos e oferecidos.



Se olharmos para trás, vemo-la.


Juntamo-nos ao cortejo. É ela. A Primavera.



sábado, 15 de março de 2008

A peregrina


Chamava-se Maria Martins. As crónicas que dela falam não a adornam com pais ilustres nem fortunas de berço. Falam de uma vida solta pelo mundo, ao sabor das inspirações. Gostava de viajar. Podemos imaginá-la soldadeira, companheira de jogral, de corte em corte pousando nas estalagens, o adufe na albarda da égua, as castanholas à distância de uma mão.
Um dia viu-se numa aflição (que muitas passava quem vivia neste modo jograleiro) e fez uma promessa: saindo salva do aperto, iria à Terra Santa, que era a peregrinação maior e mais importante que um cristão podia fazer. Salvou-se.

Um dia cansou-se da vida que levava. Há idades que fazem pensar no futuro e vidas que não deixam criar laços nem afectos seguros. Pensou em procurar um refúgio e uma irmandade com quem vivesse de mão dada. Decidiu fazer-se monja. Escolheu o mosteiro do Lorvão, que era mosteiro misterioso pela sua antiguidade envolta em lendas e incertezas, construído no alto de uma montanha por onde se sobe entre densa e silenciosa floresta. Mais de um dia de caminhada serra acima, como se trepasse ao céu.


Há pouco tempo tomara conta do mosteiro, Teresa, filha del-rei D. Sancho e mulher de Afonso IX de Leão (bela história a dela também, para um dia ser contada!), que a acolheu de braços calorosos. Maria encontrou o que procurara e foi vivendo feliz entre as monjas pelos anos fora.


Com o avançar da idade, Maria lembrou-se do voto que tinha feito em momento aflito e que nunca cumprira. Não podia morrer com esta falta! Confessou-a ao padre e dispunha-se a partir para os Santos Lugares, a pagar a dívida que contraíra. O padre não a encorajou. Uma viagem daquelas era coisa para demorar um ano, padecendo muitas dificuldades e perigos pelo caminho. Para as mulheres, pobres e simples como ela, que não podia viajar com grande comitiva de damas e cavaleiros protectores, como faziam as endinheiradas, a viagem podia ser fatal. Havia os salteadores de estrada, havia os turcos, havia os violadores de mulheres... Não, não era aconselhável!


Pendente a dívida, resolveu-se o problema com a comutação da penitência numa outra equivalente: durante o ano que duraria a viagem, Maria peregrinaria em volta do mosteiro. Assim foi. Preparou-se para a viagem. Despediu-se comovida das irmãs, que lhe fizeram um farnel para os primeiros dias. Pôs-se ao caminho, sempre em círculo, em volta do mosteiro.
Durante um ano cumpriu a viagem. Não falava com as outras porque estava sozinha a caminho de Jerusalém. Elas também não falavam com ela porque ela estava ausente. Às horas devidas, deixavam-lhe no caminho as refeições, que ela comia em silêncio. Quando caía a noite, procurava um lugar ao relento onde se encostava para dormir. Na manhã seguinte, retomava o caminho, sempre em círculo, em volta do mosteiro. Assim se cumpria o ano, com o cansaço que normalmente têm os peregrinos que fazem grandes viagens a pé.


Aproximando-se a data da sua chegada, prepararam as irmãs o mosteiro para a receber. Abraçaram-na à chegada, com grandes festejos e lágrimas de saudade. Também ela ficou feliz por revê-las e lhes falar. Depois da festa, deitou-se um pouco na sua cama, a descansar. Foram encontrá-la com um sorriso nos lábios. Compreenderam que tinha morrido feliz.



As exéquias foram de grande tristeza. Agora, sim, partia de vez Maria, a peregrina. Acabados os últimos cânticos, depostas sobre o túmulo as últimas flores, iam as irmãs recolher-se quando tocou o sino do portão do mosteiro. A irmã porteira foi assomar. Viu à porta um velho de longas barbas e chapéu de abas largas. A capa estava desbotada e suja de muita poeira do caminho. Encostava-se a um bordão e trazia uma pequena cabaça de água como usam os viajantes. Espantada pela presença de tal figura à porta de um mosteiro sem homens, em lugar que não era de passagem para nenhum caminho, a irmã porteira mandou chamar a abadessa. A que vinha?, perguntou-lhe. Visitar o túmulo de Maria Martins, disse o velho. Espantou-se a abadessa: e como sabia que ela tinha morrido se ainda agora a tinham acabado de enterrar ? Sabia que assim havia de ser, disse ele. E de onde a conhecia, à irmã Maria Martins, que há tantos anos ali entrara naquele mosteiro e nunca mais saira?

- Não dizes a verdade, madre – disse o velho – porque bem sabes que ela veio há pouco de Jerusalém e eu conheci-a no caminho e com ela viajei durante um ano e os dois juntos visitámos os Santos Lugares e regressámos pelo mesmo caminho. E disse-me ela que havia de vir aqui despedir-se das irmãs e que nos havíamos de encontrar de novo se eu a viesse procurar onde ela havia de estar à minha espera. E cá estou.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Isabel dos alemães no coração dos portugueses


Mal despontava o séc.XIII quando a Isabel nasceu, em terra dos magiares, filha do rei da Hungria. Preparava-se então cedo o futuro das meninas e ao rei André pareceu bem reforçar os laços do seu pequeno reino com os poderosos senhores germânicos, por isso tratou logo de acordar o casamento da menina princesa com o herdeiro da Turíngia (Alemanha).




Feito o pacto, ainda só com quatro anitos, lá vai a Isabel para a corte de Herman I, em Wartburgo, para ser educada pela futura sogra, Sofia. A menina era doce e a Sofia tratou-a como uma filha, de modo que aquele era o regaço de que se lembrava quando pensava na mãe. O pequeno Luís, seu prometido, puxava-lhe pela mão nos jardins do palácio, para a proteger do irmão, Henrique, invejoso e de maus fígados. Brincavam os dois não sabemos a quê mas é de crer que aprenderam juntos muitas coisas que não quereriam que nós soubéssemos. O amor que os uniu toda a vida cresceu com eles.


O Luís e a Isabel casaram em 1221, tinha ela 14 anos. Ao contrário dos senhores da época, o Luís não teve filhos fora do casamento e olhou sempre para a Isabel com admiração, mesmo quando ela queria fazer coisas que as outras senhoras não faziam. Deu-lhe inteira liberdade para agir, dotando-a de uma renda que lhe permitiu assumir a sua vocação para a assistência social: a Isabel estendia a mão aos pobres, fundou um hospital e criou meninos órfãos. Quando os ia visitar levava o regaço cheio de brinquedos e o povo chamava-lhe Mãe dos Pobres. Seus, teve três filhos.
Em 1226, na ausência do Luís, ocorreu um terrível período de fome. Sem hesitar, a Isabel mandou abrir os celeiros reais e distribuir todo o pão aos famintos.





Em 1227, tudo mudou. A peste, a terrível peste, matou o Luís. Sem a sua protecção, a Isabel e os seus filhos ainda pequenos ficaram à mercê da cobiça do cunhado Henrique. Foi expulsa da corte, despojada do dote a que tinha direito. Encontrou-se com a lama dos caminhos da Turíngia. Abandonada pelos grandes, pediu esmola entre o povo, para si e para os seus filhos, e dele recebeu o que ainda havia do pão do seu celeiro. Ao fim de um ano, foi recolhida por um tio, bispo de Bamberg, que resolveu dar-lhe a utilidade que se dava às mulheres jovens: voltar a casar. Mas a voz do Luís ainda no peito não a deixou obedecer.



Com a intervenção do papa, a Isabel conseguiu recuperar o dote e usou-o para construir um hospital em Marburgo, onde viveu o resto da sua vida tratando dos doentes e dos pobres. Em 1231, com 24 anos, partiu ao encontro do Luís. Em 1235 foi proclamada santa. Anos mais tarde, um franciscano da Toscânia escreveu-lhe uma biografia e, querendo exprimir de forma poética (como os franscicanos gostam) a beleza do espírito transformador de Isabel, inventou-lhe o milagre das rosas.



Sim, o mesmo milagre das rosas que, muitos anos mais tarde, foi atribuído à nossa Rainha S.Isabel. Eram tia e sobrinha. Isabel da Hungria era irmã da avó da nossa Isabel. A esta, o nome foi-lhe posto em honra daquela tia-avó, que morava na memória de toda a Europa como a Mãe dos Pobres. A Isabel de Aragão cresceu a ouvir falar nela e imitou-lhe o exemplo de vida. Não teve a sorte de crescer amantemente com o futuro marido, que nunca lhe foi leal nem amoroso. Mas pôde ao menos trazer para Portugal o gesto de estender a mão aos pobres. Era um bocadinho do coração da Isabel dos alemães que vinha morar no coração dos portugueses, guardada no coração da Isabel de Aragão, a que costumamos chamar nossa.



terça-feira, 4 de março de 2008

Sua Alteza Imperial


Glosando as diferenças entre povos encetadas pela Lizzie, depois da minha classificação dos ingleses como deslavados, trago uma boa notícia: mais vale deslavado e civilizado como os ingleses, do que grosseiro como os povos do norte da Europa.


Em 1451, o nosso rei Afonso V, homem delicado, culto e cortês, entregou em casamento sua irmã Leonor ao imperador alemão Frederico III. Às grandiosas festas que celebraram, em Lisboa, o casamento realizado por procuração, seguiu-se a partida da infanta, acompanhada de uma comitiva de 3000 pessoas que a levou ao encontro do seu esposo. Nessa comitiva ia um diplomata português chamado Lopo de Almeida, com o encargo de ir relatando por carta ao rei tudo o que se passasse na viagem, mormente o encontro com o imperador. Nas suas cartas, Lopo descreve pormenorizadamente a corte do imperador, a sua pessoa e os seus fidalgos alemães.

Diz que o imperador é um bananas: «nunca cuidei de ver homem tão pouco estar em seus pés, que somente a dizer-lhe um homem que se quer ir com sua mercê, nom lhe dá resposta senão que primeiro fale com três ou quatro do Conselho».


Além disso, é avarento: «Juro-vos Senhor que ele é muito escasso, sem nenhuma comparação e avarento, e vereis que fez: ele queria comprar em Florença um damasquim de brocado branco e mandou-o vir para o ver e esteve regateando com os homens de Cosme de Medicis mercador, de guisa que não chegaram a acordo e eles foram-se com o pano; a cabo de espaço, mandou dizer a Cosme que aqueles seus homens estavam muito caros com aquele pano e rogou-lhe que lhe fizesse dele um bom preço. E o dito Cosme disse aos seus homens que bem sabia ele o mercado que o imperador queria e mandou que lho levassem de graça; e ele tomou-o e não se importou! A nenhum destes vossos fidalgos que se despediram dele não deu um só ducado, nem um pão, nem a mim !». A prodigalidade para com os servidores era uma das maiores virtudes dos senhores civilizados do sul.


Diz que os alemães são rudes como selvagens: ao receberem a nova imperatriz «assentaram-se em um banco com uma alcatifa, sem o vedor ter cuidado de prover onde havia de estar a infanta, nem lhe fazer pôr ali um pano de brocado ou de seda, de que tantos lhe destes; e assim outros desaviamentos e bestearias, que cada hora fazem como canários», ou seja como os selvagens habitantes das Canárias, descobertas há pouco tempo.


Não sabem pôr uma mesa: «achámos a mesa posta que não lhe chegavam as toalhas ao cabo e ficava descoberto da mesa acerca de dois palmos, e puseram primeiro quatro ou cinco coutos de pães de cera por castiçais na dita mesa e parece que viram que não estava como devia e trouxeram um castiçal de prata que parecia de ferro e tiraram os que estavam nos pães».


São pouco asseados: chegando o imperador para almoçar com outros fidalgos alemães, lavaram as mãos «em pé, em tal maneira que não pudemos enxergar se lavaram ou não».

Depois de muitas outras descrições desdenhosas, eis o diagnóstico final do Lopo: «Não tomem os vossos oficiais daqui ousadia, porque estes homens são bárbaros e bestas, mas tomem do bom servir dos vossos reinos e dos de Inglaterra e de França, que são reinos de homens e não de bestas».