domingo, 24 de fevereiro de 2008

Pós de texugo

Todas as épocas tiveram as suas epidemias. A que mais séculos atravessou foi, provavelmente, a da peste bubónica, transmitida pelas pulgas que viajavam nos ratos e que proliferavam sobretudo nas cidades, onde a população se acotovelava e o lixo se atirava para a rua. D.Manuel foi o primeiro rei português a mandar construir uma lixeira fora dos muros da cidade de Lisboa e só depois disso os surtos de peste começaram a diminuir.






Filipa de Lencastre morreu dela. O seu primogénito, homem culto e curioso pelas ciências, tinha um caderninho onde apontava várias coisas de que queria guardar lembrança.





Era assim uma espécie de Moleskine régio.



Nele apontou o Duarte a seguinte receita para preparação do mais usado remédio contra a peste:





«Toma um texugo vivo e ata-lhe os pés e as mãos em maneira que lhe possas dar a beber isto que te aqui dirão: aljôfar e corais vermelhos e cânfora, de cada um meia onça; ouro, três coroas bem limadas. Tudo isto bem moído num almofariz, mistura-o num quartilho de vinho branco e depois de muito bem misturado dá-o a beber ao texugo por um corno pequeno, furado, mantendo-lhe a cabeça alçada e a boca aberta. Depois de ter bebido tudo, deixem-no estar um pouco e degolem-no e tirem-lhe o sangue e tomem-lhe quatro ou cinco dentes e do fígado e do coração e dos miolos e da pele queimada, de cada um meia onça e seja tudo bem pisado e misturado com o sangue. Mistura-lhe mais canela, genciana, gengibre, cravos e mirra. Tudo isto misturado com o sangue, seja bem peneirado e posto a secar onde não lhe dê o sol e lhe dê o ar. Depois de seco, pisem-no bem e guardem-no para quando for preciso».




Suspeito de que deve ter sido ali, por volta de 1437, que alguém terá inventado a frase "Mais vale morrer do mal do que da cura". É que o tratamento do doente empestado com estes «pós de texugo» também exigia procedimentos exóticos que seria longo descrever mas que me faz olhar com simpatia a farmácia do meu bairro, cheia de antibióticos em cápsulas coloridas e sintetizadas.






domingo, 17 de fevereiro de 2008

Prazeres liquefeitos

Flor de anis. Grão de café. Casca de canela. Raíz de gengibre. Damasco e chocolate. Limão, rosa e flor-de-laranjeira.


O Arnaldo aspirava longamente os aromas pensando que um dia ainda haveria de inventar um modo de os liquefazer para transportá-los sempre, guardados em frasquinhos de vidro.
Aos serões, Arnaldo de Vilanova discutia filosofia mística com o seu compatriota Raimundo Lúlio mas durante o dia dedicava-se à prática da medicina, tal como ela se fazia lá pelos anos 70 e 80 do 13º século. Antes de regressar à sua pátria aragonesa, estudou numa das mais famosas escolas de medicina da época, a de Montpellier. Também teve os seus sonhos de espiritualismo visionário porque também passou uns quantos serões com o famoso Joaquín de Fiore. Acabou até por ter alguns problemas com umas teorias demasiado excêntricas e, em 1299, chegou a ser preso em Paris por uns doutores da Sorbonne de vistas estreitas. Mas safou-se.
Um dia descobriu como poderia trazer sempre consigo os aromas preferidos e como poderia extrair das ervas curativas as suas propriedades. Fez os primeiros ensaios de destilação do álcool. Em 1311, naufragou junto a Génova, deixando-nos um legado inestimável: os licores.


Apurado o processo de fabrico, hoje temo-los para todos os gostos, alguns em frasquinhos tão bonitos que deixariam o Arnaldo encantado.

O mais português de todos:


O sensual:



O enganador Hpnotic: de aspecto leve e jovem, esconde uma bomba de vodka, cognac e frutas tropicais.

o adulto e requintado: nada como o café.


O barroco, feito com limões corsos:


O majestoso Chambord: o preferido de Luís XIV:

O muito antigo anisado:


O mediterrâneo e caseiro, de azeitona verde:


O infantil:

O campestre:


O café como se gosta nas Caraíbas:


O inesperado e redundante, de cerveja:

O clássico:


O medicinal e preferido do Arnaldo, de ervas:

O hilariante:


O clássico feminino, de menta:


O escatológico. Português, claro!


O clássico masculino, de whisky:


O preferido dos budistas, de gengibre:

O maternal:

O elegante, de laranja e chocolate :


O apolíneo, de pera williams :




De como a pera williams também pode ser lunar:

O violento mezcal, primo da tequila, é servido com uma larva de borboleta dentro da garrafa. Só mesmo para corajosos:



sábado, 9 de fevereiro de 2008

Acordada e Regressada


O Tempo, aquela rede por cujas malhas queremos escapar-nos, recorta-nos a vida. Mostra-nos constantemente os quadrados em que devemos correr pela sobrevivência, ganhar o pão com manteiga, pagar a dívida à espécie. Cada desenrolar da rede só tem 24 quadradinhos, quase todos já previamente etiquetados. Felizmente que uns sete ou oito estão reservados à experiência sublime - ainda que efémera - da escapadela pelas malhas dos quadrados. Aí as malhas são fofas como algodão doce, suaves e disparatadas, e deixam-nos escorregar e ficarmos a baloiçar-nos nelas.
Era onde eu estava até há pouco tempo.


Até que a Nnanna - querida amiga! -
preocupada com a minha excessiva sonolência, resolveu acordar-me, pedindo-me no final de A Pedra, delicada mas insistentemente, que regressasse.










Não foi nada fácil fazer-lhe a vontade!


Senti-me como uma nobre e ilustre personagem, afeita às maciezas da vida, que fosse por alguma partida do destino de repente obrigada a olhar de frente os duros contornos da realidade.









Foi uma coisa repentina.
Fiquei entalada num dos quadrados da rede.















Presa ainda entre o lá e o cá, indecisa sobre para que lado é que havia de saltar, hesitando em regressar e não regressar.
















É que a viagem por entre as malhas da rede tinha sido particularmente paradisíaca. Tinha tudo o que se pode desejar para uma vida feliz:












Espreitava para um dos lados e via a rede com as malhas sobrelotadas.
Do outro, continuava tudo azul flutuante.







Via o regresso pesado e cheio de agrestes exigências. Coisa mais para heróis.
















Mas fiz um grande esforço! Temperado com café forte que, pouco a pouco, me devolveu o sentido do dever.




Obrigada, Nnanna, por me recordares de que depende o encanto da vida!











Já me sinto outra, acordada e regressada para as laboriosas tarefas do dia-a-dia, para as alegrias da existência entre as malhas da colmeia.
Vai um potezinho de mel ?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

A Pedra

Primeiro o silêncio. A espera.



Depois a queda.

Recta, invisível, cortante

da pedra.


Depois o nervo.

As vértebras dobradas.

O chão que estremece.

O grito.



Depois as lágrimas.
A luta. Os dedos e os braços.
Fios emaranhados.


De onde vinha o silêncio

a respiração.

onde ficou a pedr
a.

Aberta
Acorda


Regressa