terça-feira, 30 de outubro de 2007

Ilhas, Faróis e Pecados

Pecado é...
... cortar a mão que se estende
... derrubar o farol que ilumina
... arrancar as raízes às ilhas.


domingo, 28 de outubro de 2007

CANDEEIRO DE ESQUINA



Quando acordou, perto da hora do almoço, lembrou-se de que era sábado e as calças brancas tinham ficado para vincar em casa da Maria da Graça. Boa rapariga, a Graça, se não fosse a ajuda dela... Desde que a mãe morrera nunca mais tivera quem lhe vincasse as calças e lhe fritasse as pataniscas da mesma maneira. Não queria agora pensar nisso porque não era ainda sem dor que sentia a sombra da mãe a acompanhar-lhe os passos na casita de quarto-e-sala em que haviam vivido toda a vida. Em sua lembrança continuava a renovar de cravos brancos o pequeno altar da Senhora da Saúde em cima da cómoda do quarto, para o qual se mudara ao fim de muitos anos a dormir no divã da sala. Na cama que fora da mãe e onde agora acordava todos os dias, sentia-se abraçado e em paz, como no dia muito distante da sua infância em que vira o pai sair para sempre pela porta da entrada.
Fez a barba com esmero, pendurou ao pescoço a grossa corrente de ouro com os amuletos preferidos, e rematou em abundância com o after shave que comprara em promoção na mercearia do vizinho Américo. Olhou-se ao espelho. Talvez já não se pudesse dizer facilmente que fora o rapaz mais atrevido do bairro, e bem-parecido, e disputado pelas moças porque sabia segredar-lhes aos ouvidos melhor do que os outros. Os anos tinham passado quase sem dar por isso e as noites bem regadas traziam com a casa dos sessenta as suas indeléveis marcas. Mas continuava a pensar nos detalhes da aparência, na camisa de riscas com colarinho branco engomado (ai a Graça!...), no colete azul e no risco irrepreensível do cabelo, que se mantivera inesperadamente farto. Não era como os rapazes novos, de calças de ganga esfarrapadas e t-shirt (no seu tempo chamava-se blusa...) desbotada.
Saíu de casa confiante, cumprimentou a Rosa Maria com a galhardia do costume, atirando ao ar um dos seus melhores piropos, que a fez encolher os ombros e sorrir. O dia não era para pressas, por isso encaminhou-se para a Rua do Vigário, a pensar na conversa agradável que gastaria devagar na tasca do Zé das Febras com outros rapazes do seu tempo. Se fosse há uns anos, seria de outra maneira. Nunca lhe faltara ao sábado uma moça para levar pelo braço a ver as montras da baixa e a marcar lugar na pensão Moderna (que a mãe não transigia nessas coisas!). Agora, os tempos eram outros e sabia bem que não podia ir além da sua colecção de piropos, a melhor do bairro! Até podia ganhar um concurso se fizessem um na televisão!
Às vezes tinha uma certa pena de não ter casado, de não ter criado uma família, netos que lhe enfeitassem os últimos invernos. Deixara partir, há muito tempo atrás, a Ana Maria, com um filho seu na barriga... Nunca mais soubera nada dela...
Pela segunda vez nesse dia, afastou os pensamentos tristes. Tinha outras coisas que lhe enchiam a alma. Nem tudo na vida são esposas e filhos.
Esgotou a conversa da tarde tão esquecido de tristezas que, quando deu por isso, anoitecia. Voltou à sua rua, a bater à porta da Graça, e recebeu nos braços as calças brancas e vincadas. Depois de vestidas e de novo na rua, sentiu-se verdadeiramente feliz.
De mãos nos bolsos, trauteando baixinho, dirigiu-se para a rua de todas as noites. Era ali que vertia os suspiros para os transformar em ais sentidos que partiam como setas ao coração do público. Ali, no Candeeiro da Esquina. Já podia ouvir à entrada os acordes das guitarras. Cantaria a sua série de três fados. Encheu o peito e entrou. Ali estava a sua paixão. As luzes baixas, o povo atento, as raparigas de xaile traçado, o lugar em branco entre os guitarristas, reservado para ele. Ali sentia-se rei, com poder de fazer chorar ou sorrir, de despertar a saudade e encantar os namorados.
Relanceou o olhar pelas mesas. Havia gente nova, que nunca tinha visto. Um grupo que não era do bairro, gente com ar de fina, já todos um pouco tocados do bom tinto da casa. Público novo era sempre bom!
O Eduardo, o mestre de cerimónias, chegou-se aos dois candeeiros vermelhos que, como balizas, reservavam o lugar dos artistas e anunciou-o:
- E agora, meus amigos, silêncio, por favor! Na minha presença e na vossa... Armando Fadista!
Era a sua deixa. Ergueu o peito, fechou os olhos, ombros para trás, e atacou o fado da igreja de Santo Estêvão com a alma toda.
Nem três versos o deixaram cantar antes de começarem os murmúrios. O que é que se passava? Abriu os olhos e viu o grupo de visitantes finos em alegre troça. Riam-se dele! Não acusou o toque e continuou a cantar. Os nervos, porém, descompassaram-lhe a voz. Nunca tal lhe tinha acontecido! Riam-se de quê? Como é que não respeitavam o sagrado silêncio do fado?! Alguns gritos soaram claros: «Já chega!», «Venha outro!», «Cantas mal!». Achavam que cantava mal! Ele, Armando Fadista, filho da Maria Eugénia, que fora, no seu tempo, a melhor cantadeira de Alfama! Como se atreviam!? Bonecos apalhaçados, sabiam o quê do Fado?
As gargalhadas ouviam-se na sala. Armando sentiu a raiva concentrar-se-lhe na garganta e transformar-se num balão de água prestes a explodir-lhe nos olhos. Acabou o fado com custo e teve coragem para os encarar de frente:
- Eu quando não gosto aplaudo à mesma! Podem não gostar mas respeitar!
E saíu, muito direito, o corpo franzino aprumado, apesar das pernas bambas a fazerem perigar a rectidão do vinco da Graça!
Cá fora encostou-se por momentos ao candeeiro que marcava a esquina do restaurante. Não deixaria as lágrimas cair! Pediu ajuda às pedras ásperas da calçada e encaminhou-se para a sua cama, onde os braços da mãe, feitos de sombra e amor, o embalaram.




quinta-feira, 25 de outubro de 2007

METÁFORAS





Paixões são uvas maduras,
vêm de onde outras costumam vir.
Redondas de luz, doces, breves e agudas.





Razões são peças na mão,
cartolinas coloridas, jogo da glória, do ganso,
da arte da convicção.


Sonhos são paredes brancas
que guardam do frio e da chuva,
cobertas de telhado quente.



Há escadas, caminhos, degraus
que acolhem os regressos
às paixões inesperadas.



Há razões que se calam,
sinuosamente reflectidas
nos armários fechados da memória.


quinta-feira, 18 de outubro de 2007

A CASA E O RIO. Terceiro Andamento.

Um ramo de lírios roxos, tia Nina! Como tu gostavas de lírios! Aqui tens, sobre o mármore liso do teu rosto! Usavas seda azul antes, muito antes de haver manhãs claras e frias como esta. E o teu rosto era outro, como um regaço doce.
Não há ninguém por aqui. Até para visitar os mortos parece ser necessário escolher bem as horas. E, no entanto, é bem certo que não há tempo por aqui, tia Nina, e que a solidão te deve atormentar. Ninguém menciona o teu nome, ninguém se lembra de ti. Como é fácil perder a memória! A Laura visita-me sempre e eu fico à espera que ela me dê notícias tuas, não sei bem porquê, como se fosse uma obrigação que ela não cumpre. Talvez porque ela ficou na nossa casa e me pareça sempre provável que ela encon­tre, caído atrás da senhorinha de damasco anil, o dedal de prata que tu perdeste há tanto tempo. Ou penso que ela me vai dizer: "Sabes, ontem fiz biscoitos de natas por aquela receita da tia Nina!"
Mas a Laura acredita que eu estou louca... Fala-me como se eu fosse criança. E por vezes quase gostava de ser, sabes, tia Nina, como quando eu era bem pequena e tu ainda eras livre e alegre e vivias connosco e as minhas irmãs ainda não tinham nascido. Só eu me posso lembrar desse tempo, nenhuma delas se recorda de ti como um pássaro azul à espera da Primavera. Rias, brincavas comigo e por vezes ficavas séria, como se algo de verdadei­ramente importante se fosse decidindo em ti. A mamã chamava-te Nini, nome um pouco ridículo se não fosse a ternura que carregava. Ternura igual só a de Rodrigo que te vira crescer. Às vezes, quando me traz o chá ou me lembra as horas para que eu vá dormir, tenho vontade de lhe perguntar ou de lhe contar coisas sobre ti. Mas vejo-o tão velho, com passos tão cansados e olhos tão tristes que nada digo. Perdeu as suas duas meninas. Primeiro a mamã e agora tu.
O teu rosto é macio mesmo assim. A terra aqui tem um cheiro acre a molhado e profundo que impressiona. Faz pensar que a terra tem uma alma grande e misteriosa, que assusta e atrai. Por vezes, quando venho e me sento perto de ti e me esqueço das horas, julgo ouvir muitos e variados murmúrios, indistintos. Como se esta terra toda, carregada de memória e vozes, se levantasse a falar e, não alcançando o seu esforço, se deixasse logo após cair na sua paz. Não posso falar de tal coisa à Laura! Pensa que eu estou louca só porque às vezes me esqueço das horas ou me distraio. Pobre Laura! Como sofre naquele casarão! Vejo nos seus olhos que me vem visitar porque as paredes a atormentam e gostaria de fugir e descansar. Pobre Laura!
Lembras-te, tia Nina, quando a Laura nasceu todos ficámos tão felizes! Eu não entendia bem que se tratava de outra como eu, que viria a correr e brincar e conversar, achava aquela criatura tão adorável como as bonecas de porcelana que se sabe não serem verdadeiras e se tem medo de partir. Mas tu, tia Nina, eras tão jovem e passavas muito tempo com ela ao colo, canta­vas e querias sempre vesti-la e despi-la, como se de facto fosse uma bone­ca. A Laura foi sempre a mais corajosa de todas nós. Foi sempre a que proclamou os direitos de todas, a que comandou as brincadeiras e a que tinha razão. Foi certamente por coragem que quis ficar no casarão que a tortura e nunca me diz, quando vem à casa do moinho visitar-me, nunca me diz: "Estou tão triste!", ou "Deixa-me vir para aqui!", nunca chora nem grita, porque a Laura sempre foi corajosa. Lembras-te quando queria acusar-se pelas nossas traquinices? Lembras-te quando batia nos rapazes que lhe levantavam as saias? Pobre Laura!
Suspeito que sente a falta da Edna. Não que ela o diga! Mas no outro dia encontrou por acaso na casa do moinho um velho xaile dela e olhou-o com tanta tristeza e agarrou-o como se tivesse necessidade de o levar. Mas logo depois o largou, como se se achasse ridícula e foi-se embora depressa. É que a Edna nunca mandou notícias!
Vem além uma mulher, tia Nina, felizmente não vem para perto. Veste toda de preto, luto recente, traz margaridas. O conjunto tem um ar alegre, como o cantar de um melro que avança de ramo em ramo. A Edna sempre viveu num mundo à parte do nosso. Nunca estava satisfeita, nunca sabia bem o que queria. Desde que tu a ensinaste a tocar, o piano é que a conhecia bem. Dela esperávamos sempre qualquer coisa, porque a Edna não falava como nós, não brincava como nós. Talvez por isso tu a protegias mais, como se fosse de todas a mais vulnerável. Podia passar dias inteiros sem falar, como se nada existisse à sua volta. Excepto, claro, o piano. Mas agora que a solidão é verdadeira, a Edna deve sofrer mais que qualquer uma. Porque ela tem uma capacidade especial para sofrer mais do que os outros. Como quando se deu o acidente, lembras-te, tia Nina? Ela não tinha mais do que cinco anos, talvez nem entendesse completamente o que significavam os corpos do pai e da mãe imóveis como se dormissem e todavia passou uma semana sem falar e, mesmo depois de alguns anos, se se falava no que acon­tecera, a Edna nunca participava na conversa, como se carregasse aquela dor encerrada e viva para sempre. Por isso partiu. Só a distância a faz crer no esquecimento da tua partida, tia Nina! E três anos lá vão já.
Por vezes fico espantada como três anos pode ser tanto tempo. É como se eu sempre tivesse vivido na casa do moinho. Como se as paredes meio arruinadas sempre me tivessem defendido. Porque quando eu morava no casarão, e a Laura, a Edna e tu, Verlanda era outra, diferente e jovem. Capaz de amar...
Amar como qualquer outra.
Tia Nina, o sol começa a levantar-se, faz calor aqui. Deves estar em paz. É tão sereno este teu lugar, tão luminoso! Como tu quando rias no casarão e contudo não eras feliz. Jovem e encerrada, isso é que tu eras. Porque nós, sozinhas, precisávamos de ti. Porque era preciso educar as sobrinhas. Porque a mamã te tinha educado, porque, porque. Rias com tantos porques! E contudo amavas-nos na mesma. O teu vestido azul tornou-se cinza, era mais discreto e tu já tinhas pouco mais de trinta anos. Nessa idade e solteira já não fica bem chamar a atenção. Mas eras tão linda, mesmo assim! Quando ele chegou, ficou com os olhos em ti como numa fonte d'água.
Oxalá chova para os lírios não parecerem murchos...
Nessa noite ao jantar puseste no vestido um pequeno lírio branco. Mas nessa altura cada uma sozinha já então começara o inevitável. Eras linda, tia Nina! A Edna era interessante, com os olhos sombreados de silêncio, mas não tinha a tua clareza. A Laura era inteligente, conversava com graça, mas não tinha a tua suavidade. E eu, eu era grande demais, não sabia o que fazer com as mãos, o vestido não me assentava bem e tu só tinhas olhos para ele. Era belo como dizem que os marinheiros costumam ser e sorria. Escutava em silêncio a música de Edna, conversava com os poetas da Laura e sorria-me. Para ti estendia às vezes a mão, quando pensava que nós não olhávamos.
Tudo mudava no casarão. Já não havia serões em que tu contavas histórias da Princesa de Hera e nós três escutávamos, deitadas sobre a saia do teu vestido. O teu vestido mudava todos os dias e ele parecia cada vez mais belo. A Edna contava-lhe não sabíamos o quê que nunca nos contara. A Laura chorava como nunca tinha chorado. E eu desejava que a mão dele tocasse o meu cabelo e via os lábios dele sobre mim.
Querias partir, tia Nina. Nós adivinhávamos que ias partir. O silêncio instalava-se entre nós e entendemos então que ele partiria e tudo morreria em nós como se nunca tivéssemos nascido.
Arrefece. Tenho frio. Este teu leito de mármore é tão difícil!
Quando veio a tempestade e ele andava no rio, tu disseste que ele não conhecia os pegos e que o Rodrigo devia ir buscá-lo. Mas o Rodrigo não estava e fomos todas, saber onde andava pescando. Tu foste rio acima e nós vínhamos a caminho da casa do moinho, onde o rio se revolta para dar força à azenha. Chovia e o céu era tão negro como se Deus quisesse escrever nele com fogo. E eu vi-o. O rio enchera e ele esforçava-se por alcançar terra firme. Toda a terra se empapava em água. A cana e os fios da pesca dificultavam- lhe os movimentos. Edna gritou e ele ficou feliz por nos ver.
Vem vindo agora gente. Não podemos estar sozinhas, tia Nina! Nunca mais poderemos estar sozinhas.
De longe apontei-lhe o caminho. Como nós todas conhecíamos todos os caminhos! Na casa da azenha brincávamos no Verão. Nem uma palavra da Laura ou da Edna, nem um olhar ou um aceno que dissessem não, esse é o pior caminho.
Estávamos geladas da chuva e da tormenta. O vento uivava e tudo em nossa volta parecia caminhar para um turbilhão definitivo. Com um estrondo, a velha azenha há tanto imóvel começou a girar com a força da água e parecia louca, como se mil ventos a empurrassem, girava, girava.
Tudo parecia um inferno quando tu chegaste, desvairada, pálida, desfeita. Segurámos-te com todas as nossas forças mas o vestido azul que volta­ras a pôr rasgou-se-nos nas mãos e tu voaste como um pássaro ferido para o pego por onde ele partia. Tu partiste, tia Nina!

Tu partiste! Tu partiste.




terça-feira, 16 de outubro de 2007

A CASA E O RIO. Segundo Andamento


Só as estevas florescem nestas serras, Laura, para que me falas de amarílis? Trouxe no bolso a tua carta durante dois dias, antes que vencesse a minha vontade de silêncio para te escrever. Que mal me fizeste, Laura, trazendo de volta a estas fragas memórias e desejos que venci cansando os meus olhos nas pedras rudes e os meus ouvidos nos cantares agrestes desta gente! Tem sido essa a minha música e aprendi a gostar deste canto de anciãs fiando toda a noite e invocando em notas estranhas e voz rouca o fogo, queimador da vida e alimentador das paixões. Habituei os sentidos às ladainhas e ao toque exagerado dos sinos, falando de colina para colina num redobro de falas que, nos primeiros tempos, quase me enlou­quecia.
Estou em paz, Laura. Aqui, neste canto perdido do mundo, não há desas­sossego que me possa vir. Respeitam-me o suficiente para não me deixarem só mas, sendo estrangeira, não se aproximam o suficiente para me magoarem. As crianças são rudes, mas aprendem com gosto. O único piano que existe perto é um velho piano desafinado, na igreja da vila próxima. Soam tão mal as notas que nunca tive a tentação de me aproximar para tocar. De resto, som de piano é coisa espúria nestes lugares de penedos e estevas, onde o amanhecer é que é uma sinfonia grandiosa de luz ardendo a terra e terra exalando no ar sons de corpo vivo agarrando os pés dos homens!
E vens tu falar-me em voltar? Vens tu fazer-me responsável pela loucu­ra de Verlanda? Sou eu mais responsável do que qualquer outra de nós? Porque tenho que curar as loucuras dos outros, se a minha a venci sozinha? Laura, que bem nos pode fazer viver de novo tudo o que não devíamos nunca ter vivido? Como pensas que suportaríamos novas culpas, novos remorsos? Não vês tu que já foi longe de mais este destino que nos trouxe ao silêncio de cada uma fechada na sua própria mansão de destroços? Verlanda está certa, o passado é só dos mortos!
(to be continued...)

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

A CASA E O RIO. Primeiro andamento.


As amarílis estão floridas desde ontem. Invadem o céu do jardim de pequenos nós brancos. Quando ontem quis visitar Verlanda surpreenderam-me, ao entrar na alameda, com os seus salpicos de espuma sobre a folhagem. Lembrou-me o jardim os velhos dias de Verão, quando a tia Nina mandava o Rodrigo trazer a mesa do chá para a relva e nós comíamos maçãs verdes sob aquele manto branco que nos enfeitava os cabelos e nos fazia sentir como pequenas ninfas.
A medo, quis contar a Verlanda como a casa tem agora um véu de outro­ra, mas ela cortou-me a palavra com um gesto e disse: "O passado é dos mortos!". Magoa-me cada vez mais o olhar distante de Verlanda. Dia a dia parece mergulhar mais para sempre num silêncio sólido e dolorido, que não compartilha com ninguém. Rodrigo serve-a em silêncio também e, mesmo ele, tão indiferente, parece sofrer com o anúncio de loucura que lhe borda o rosto. Só tu, Edna, poderias devolver-lhe um pouco a noção da sua própria presença. Porque não vens por algum tempo? Que importância tão grande pode ter a tua permanência aí, quando Verlanda precisa de ti?
Quando ontem ia regressar, encontrei no vestíbulo o teu xaile azul. Tomei-o nas mãos para interrogar Verlanda sobre a sua presença naquele cabide de parede, no vestíbulo. Mas imediatamente surgiu sob ele aquela greta de que por certo te lembras na parede da direita, sobre o contador de pau-rosa. Verlanda olhou-me com uma altivez de quem se queria desculpar e disse-me: "Edna é teimosa. Nunca percebeu que eu amo essa parede e quer proteger-me dela". Depois sorriu e, com um gesto, levou-me à saída. Quando fechou a porta, olhei pela janela e vi-a colocando de novo no cabide o teu xaile azul que eu abandonara sobre o contador.
Bem sei que queres, também tu, evitar uma visita ao passado, mas de que serve tão grande esforço se a tua ausência é ela mesma a visitação permanente dele? Como queremos nós esquecer qualquer coisa que vive inteiramente em nós, no teu exílio, na minha solidão, na loucura de Verlanda, condenada por suas próprias mãos àquela casa em ruínas? Minha querida Edna, tenho pensado ultimamente se não deveríamos en­frentar de novo os fantasmas, chorar nos braços umas das outras, magoarmo-nos até que a mágoa se esgotasse. Como suportas tu tão longo esquecimento, como persegues tu as imagens que, bem sei, te ferem o sono e a vontade que sempre tiveste de voar além de todas nós?
Perdoa-me esta carta com que interrompi o silêncio que, sem palavras, nos impusemos. Mas a nossa casa continua viva e, agora que só eu oiço, nos seus recantos, os ecos de outros tempos, sei que chegou a hora de revisitarmos o passado. Três anos, Edna, se passaram. Porque não regressar? Responde-me, peço-te. Não deixes que caia na nossa decisão um mal que nunca soubemos bem porque nos foi imposto.
(to be continued)

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

ESPANHA ANTIGA. Guadalupe

Era uma vez um pastor de Cáceres que andava apascentando as suas ovelhas junto ao Rio Escondido (Rio Guadalupe). Corria o reinado de Afonso X, o Sábio (1252-1284).
Os milagres são sempre coisas difíceis de explicar, por isso diga-se apenas que, milagrosamente, o pastor encontra uma imagem, que estava escondida - como o rio - desde o séc. VIII.
É uma imagem de Maria, de corpo de cedro e negra como a Amada do Cântico dos Cânticos:
“Sou morena mas formosa... foi o sol que me queimou” (1:5-6)


A história conta que a imagem veio da Terra Santa no século I e que andou viajando e milagrando por Constantinopla, Roma e Sevilha. Depois que o pastor a encontrou não tardaram os peregrinos. Têm aparecido até hoje.
Primeiro construíu-se-lhe uma ermida e mais tarde, no século XIV, um mosteiro de jerónimos que sabiam como transformar o culto à Virgem negra na principal força económica e social da região.
Em 1464 contava 130 frades. Tinha um scriptorium (oficina de produção de manuscritos), uma oficina de artesãos, uma escola e um hostipal com sua botica onde se prestavam cuidados médico-cirúrgicos de vanguarda.

As obras de construção prolongaram-se pelo séc.XV, resultando na magnífica fachada gótica


A proximidade dos mouros ensinou aos pedreiros cristãos linhas e traços mudéjar


No claustro, a abóbada celeste pode guardar-se todos dias no olhar, como uma quadro emoldurado



Na sua longa experiência milagreira, Senhora Negra especializou-se: salva os cativos em terra de infiéis e protege aqueles que desafiam os perigos do mar.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

ESPANHA ANTIGA: Cáceres

Cáceres, capital da Alta Extremadura, é uma cidade de pedras conservadas. Noutros lugares, o tempo e o sol abrasador consumiram a memória dos passos que atravessavam as ruas. Aqui não. Durante a hora da siesta, quando todos dormem, só os viajantes estrangeiros se atrevem por entre as ruelas estreitas da cidade antiga. É fácil parar por uns segundo e ouvir dobrando a esquina um trote de cavalos puxando uma carruagem. Vemo-la entrar, vinda da Plaza Mayor.


Tão perto que quase saltamos de susto, rostos vigilantes estavam já há alguns minutos espreitando sobre o nosso ombro.




Alguns de face inquietante.



Também nos observam janelas fugidias, que guardam segredos que nunca nos serão revelados,

ainda que por vezes se enfeitem de pombas.



Por ali tudo se some e esconde nas sombras dos arcos.



Vislumbramos neles o rasto fugaz de um vestido de seda. Quem será?


A carruagem parou. Ouvem-se os gritos dos moços que acorrem à voz do cocheiro. Abrem-se as portas do palácio Toledo-Moctezuma.



Da carruagem desce uma menina, de vestido de seda brocada arrastando nas pedras do chão. Desaparece rapidamente atrás da porta, que se fecha. Mas não sem que antes lhe possamos ver o rosto moreno de negros cabelos de azeviche e apreciar o porte altivo. É a bisneta de Isabel.
O palácio foi mandado construir, lá para finais de quinhentos, por um nobre de Espanha: Juan de Moctezuma, neto da princeza azteca Tecuixpo Ixtlaxochitl, filha do imperador Moctezuma II, cujo império foi destruído por Hernán Cortès, quando ela tinha 12 anos. Apesar de longamente ter resistido ao invasor, acabou por ser violada por ele e acabou por casar com um espanhol, de quem teve vários filhos. Foi baptizada Isabel de Moctezuma. Os seus descendentes, estabelecidos em Cáceres, orgulhavam-se da ascendência imperial índia e do nome.

Longe dos palácios aztecas, a bisneta de Isabel vive agora sob a protecção de Santa Maria: