segunda-feira, 15 de outubro de 2007

A CASA E O RIO. Primeiro andamento.


As amarílis estão floridas desde ontem. Invadem o céu do jardim de pequenos nós brancos. Quando ontem quis visitar Verlanda surpreenderam-me, ao entrar na alameda, com os seus salpicos de espuma sobre a folhagem. Lembrou-me o jardim os velhos dias de Verão, quando a tia Nina mandava o Rodrigo trazer a mesa do chá para a relva e nós comíamos maçãs verdes sob aquele manto branco que nos enfeitava os cabelos e nos fazia sentir como pequenas ninfas.
A medo, quis contar a Verlanda como a casa tem agora um véu de outro­ra, mas ela cortou-me a palavra com um gesto e disse: "O passado é dos mortos!". Magoa-me cada vez mais o olhar distante de Verlanda. Dia a dia parece mergulhar mais para sempre num silêncio sólido e dolorido, que não compartilha com ninguém. Rodrigo serve-a em silêncio também e, mesmo ele, tão indiferente, parece sofrer com o anúncio de loucura que lhe borda o rosto. Só tu, Edna, poderias devolver-lhe um pouco a noção da sua própria presença. Porque não vens por algum tempo? Que importância tão grande pode ter a tua permanência aí, quando Verlanda precisa de ti?
Quando ontem ia regressar, encontrei no vestíbulo o teu xaile azul. Tomei-o nas mãos para interrogar Verlanda sobre a sua presença naquele cabide de parede, no vestíbulo. Mas imediatamente surgiu sob ele aquela greta de que por certo te lembras na parede da direita, sobre o contador de pau-rosa. Verlanda olhou-me com uma altivez de quem se queria desculpar e disse-me: "Edna é teimosa. Nunca percebeu que eu amo essa parede e quer proteger-me dela". Depois sorriu e, com um gesto, levou-me à saída. Quando fechou a porta, olhei pela janela e vi-a colocando de novo no cabide o teu xaile azul que eu abandonara sobre o contador.
Bem sei que queres, também tu, evitar uma visita ao passado, mas de que serve tão grande esforço se a tua ausência é ela mesma a visitação permanente dele? Como queremos nós esquecer qualquer coisa que vive inteiramente em nós, no teu exílio, na minha solidão, na loucura de Verlanda, condenada por suas próprias mãos àquela casa em ruínas? Minha querida Edna, tenho pensado ultimamente se não deveríamos en­frentar de novo os fantasmas, chorar nos braços umas das outras, magoarmo-nos até que a mágoa se esgotasse. Como suportas tu tão longo esquecimento, como persegues tu as imagens que, bem sei, te ferem o sono e a vontade que sempre tiveste de voar além de todas nós?
Perdoa-me esta carta com que interrompi o silêncio que, sem palavras, nos impusemos. Mas a nossa casa continua viva e, agora que só eu oiço, nos seus recantos, os ecos de outros tempos, sei que chegou a hora de revisitarmos o passado. Três anos, Edna, se passaram. Porque não regressar? Responde-me, peço-te. Não deixes que caia na nossa decisão um mal que nunca soubemos bem porque nos foi imposto.
(to be continued)