sábado, 27 de junho de 2009

A VIAGEM. 3. Terra.

Há já várias horas que caminhavam por entre um bosque cerrado. Pelo menos as horas passadas pareciam muitas mas, como Túndalo sentia que o cansaço se lhe aliviava a cada novo passo, pensou para si que talvez ele não soubesse nada acerca de horas ou talvez as horas sempre tivessem sido diferentes do que lhe parecia. A verdade é que a escuridão verdejante em que caminhavam não dava sinais de nascer nem de pôr de sol e todo aquele tempo parecia demasiado para uma só noite. Mas seria a noite, de facto, uma verdade consistente? - pensou Túndalo. Seguiam calados e, sem saber porquê, não lhe apetecia interrogar o anjo sobre todas estas dúvidas que lhe acudiam ao espírito.

Por fim, a caminhada desembocou numa ampla clareira. As árvores foram repentinamente substituidas por um chão raso e nu, vermelho e seco, que se estendia até muito longe. Túndalo estacou e, com ele, o anjo. E agora? Que fazia ele ali, naquela imensa eira barrosa que não levava a lado nenhum?
- Onde vamos? - perguntou ao anjo.
- Porque paraste? - perguntou o jovem luminoso.
- Mas onde queres que vá? - ripostou Túndalo, com um gesto enfastiado - afinal o que pretendes com isto?
- Túndalo, Túndalo... - riu-se o companheiro - não aprendeste nada? Julgas que se pode parar a meio do caminho?
- Mas porque não podemos ficar aqui na orla do bosque? Ao menos haverá frutos ou sementes para comermos e talvez a manhã nos traga um pouco de orvalho que nos mate a sede. Aí por onde vais só vejo ermo e secura...
- Tens fome ou sede?
- Não, ainda não, mas vou ter.
- E se não tiveres, porque terás ficado aqui? E de que manhã estás tu a falar?
- Bem, acabará por amanhacer, mais cedo ou mais tarde, não? - atirou-lhe Túndalo.
- Vá lá... - murmurou o rapaz de branco sem sinal de ter entendido a ironia - não queres resposta para as tuas perguntas? Tens de vir...
- Mas porque não me respondes aqui?!
- Não te impacientes. Olha lá ao fundo, por trás daquela nebelina.
Túndalo apurou os olhos na direcção apontada. Muito distante conseguia ver uma nuvem parda que parecia pairar sobre os vapores avermelhados daquele longo e rubro deserto.
- Só vejo uma nuvem. Que tem ela de especial?
- Tens de ir mais perto para saberes. Tens de continuar a andar.
- E que me interessa isso? Quero lá saber do que está por trás da nuvem!
- Como sabes que não queres saber se não sabes o que é ?
- E como sei que quero?
- Chegando mais perto. É a única forma. Vamos!


O anjo parecia determinado. Abandoná-lo-ia se ele se deixasse ficar? Provavelmente. Ficar ali sozinho é que não. Como faria para voltar para casa? Pensar na sua casa fez-lhe de repente chegar as lágrimas aos olhos. A sua boa cama de lençóis de linho, o seu dossel de seda que lhe embalava o sono, os risos dos amigos povoando a mesa, a alegria das canecas girando de mão em mão... Tinha de voltar para casa! Portanto, restava-lhe seguir em frente.
Começou a andar adiante do anjo, que sorria da sua pressa. Começou a contar os passos, para calcular mentalmente quanto faltaria para acabar de atravessar o ermo vermelho. De cabeça baixa, punha metodicamente um pé à frente do outro.
O anjo começou a assobiar, fazendo-o virar a cabeça de espanto. Que bem que ele assobiava! Parecia uma flauta que o seguia e lhe elevava os passos. Nunca antes tinha ouvido uma música assim, tão suave e alegre ao mesmo tempo! Não se atrevia a dizer uma palavra, enlevado na melodia, e acabou por se esquecer de contar os passos. Não sentia fome, nem sede, nem cansaço. Aliás, não sentiu nada além de uma espécie de felicidade que lhe vinha do assobio do seu companheiro, até que, ao longe, por entre a névoa distante, julgou divisar algumas formas. Que seria aquilo? Parecia brilhar no alto de uma colina e clareava como a manhã mais ensolarada que alguma vez vira.




Não fazia ideia de quantos passos dera afinal mas a verdade é que se abeiravam agora da base da colina e a nuvem que a envolvia ocultava-lhe apenas o topo, deixando ver uma encosta florida de margaridas e lilases. Ou seriam outras flores? A cor estava certa mas nunca vira flores tão grandes e tão viçosas, suavemente dobradas por uma brisa fresca que soprava de leste. Não dera por nascer o sol mas a verdade é que ele se estendia agora por todo o lado, brilhando nos olhos do anjo como pérolas.
Que jardim seria aquele? E o que esconderia a nuvem lá em cima? Seria longa a distância até ao topo? Tinha de ir ver !


- Queres ficar por aqui ? - perguntou o anjo, sentando-se.
- Aqui?! Nem penses! - respondeu Túndalo - Vamos subir!
- Ah! – exclamou o anjo - pensei que talvez quisesses parar, podíamos descansar um pouco entre estas flores...
- Mas tu estás cansado?! Que anjo me saíste! Eu estou muito bem, vamos lá, levanta-te!
- Está bem... - disse o anjo, estendendo-lhe a mão - ajuda-me aqui! Ainda tenho de procurar o melhor caminho para subirmos.
- Então, então, rapaz... - disse Túndalo, puxando-o pela mão a apontando uma vereda que se escondia sob uma cascata de flores - não estás a ver ali? É o caminho.
- Bom... vamos lá então.
Pintura: o Salvador.
(Insiste em continuar mas há-de acabar-se-me na próxima, juro! ...)