sábado, 25 de abril de 2009

A VIAGEM. 2. A ponte.


Estendendo-lhe a mão, o jovem empurrou a pesada porta que se entreabriu com um rangido. Um arrepio percorreu a espinha de Túndalo, porque lhe pareceu aquilo ranger de dentes e porque a luz não inundou a sala como ele esperava. Olhou para trás e viu o seu corpo caído no chão da taberna. Compreendeu que o caminho era em frente e seguiu o jovem.
Lá fora flutuava no ar uma finíssima cinza que obscurecia quase tudo. Subitamente cortou-lhe a visão uma figurinha negra que lhe guinchou aos ouvidos. Atordoado, Túndalo recuou mas por pouco tempo porque atrás do primeiro vinham dezenas de criaturas iguais, negras e insuportavelemente gritantes. Voavam com umas pequenas asas de morcego e em breve o tinham cercado, separando-o do seu guia, e cantando desafinadamente:

Alma cativa,
cantamos a morte,
de que és filha
e da má sorte!
Amiga das trevas
pasto do fogo!
Ai mesquinha,
eis o teu povo!
E a soberba, onde é que a trazes?
E a discórdia, não a abraças?
Vamos! à peleja, à cobiça, rapazes !
à vanglória, à lama, às armas!


Túndalo queria afugentá-los mas não podia. A cada momento chegavam mais, vindos de todas as ruas. Então o rapaz de branco gritou-lhes bem alto que se fossem e eles calaram-se imediatamente. Murmurando contrariados, começaram a sair, deixando atrás um zum-zum atordoante. Túndalo sentiu quebrar-se-lhe o ânimo e levou as mãos aos olhos para esconder as lágrimas. Mas o guia, que cortara o ar com uma mão e segurava por uma perna uma daquelas criaturas, mostrou-lha sorrindo e disse-lhe:
- Vamos lá, que é isso? Estou contigo desde que nasceste e nunca deixei que nada de mal te acontecesse!... Olha, não é uma coisa feia este diabinho ? Passava o tempo empoleirado no teu ombro a segredar-te e deu-me muito trabalho estar sempre a enxotá-lo. Agora que já o conheces espero que deixes de lhe dar ouvidos. Vamos, que a viagem é longa!


A caminho pelas ruas desertas e escuras, Túndalo sentiu-se reconfortado. Do seu companheiro emanava a luz de que necessitavam e em breve o espaço começou a alargar-se à sua frente. Sairam da cidade e caminharam durante muito tempo por uma floresta densa. Chegaram, por fim, ao extremo do caminho, que parecia terminar abruptamente num promontário de onde não podia sair-se sem voltar para trás. Mas o anjo, que o trouxera, apontou para baixo e Túndalo viu estender-se no fundo de uma escarpa um imenso vale. Sentou-se, com o guia, tentando entender o que via. De um túnel chegavam almas em fila, empurradas com forquilhas pelas detestáveis criaturas negras e obrigadas a entrar dentro de uma fornalha acesa. O cheio no ar era nauseabundo. A fornalha tinha uma saída em forma de bico de jarro, de onde as almas saíam derretidas como cera. Eram recolhidas pelas criaturas negras numa espécie de sertãs e depois atiradas num lago gelado, onde nevava continuamente e onde o vento as não deixava paradas. Aí voltavam à sua forma anterior e ficavam capazes de andar. Então eram empurradas por uma escada até à entrada de uma ponte muito comprida, da largura de apenas um pé, que ligava o ponto onde Túndalo estava e o outro lado do vale. Sobre aquela ponte teriam de atravessar o vale, a menos que caíssem no fundo, habitado por uma enorme besta com duas cabeças. Cada cabeça tinha olhos como outeiros acesos e de cada bocas saíam duas serpentes. As almas que caíam eram mastigadas por uma daquelas cabeças e, depois de devidamente trituradas, eram devolvidas à fornalha.


- Temos de chegar ao outro lado – disse o guia.
- Como ?! – exclamou Túndalo, sobressaltado – que queres dizer?
- Que teremos de nos encontrar do outro lado e nem tu podes vir comigo nem eu posso atravessar contigo a ponte.
- Mas não disseste que estarias sempre comigo?!
- Sim, vou estar lá do outro lado à tua espera. Podes ter a certeza disso. Não te abandonarei.
-Mas... – Túndalo estava realmente zangado – muito obrigado! Estás comigo mas não nos piores momentos!
- Então – disse o guia, pondo-lhe a mão no ombro – acalma-te. Se olhares para o final da ponte ver-me-ás à tua espera de mão estendida. Só tens de manter o pensamento na minha mão e dar um passo de cada vez, sem tentares chegar depressa de mais.

E dizendo isto, desapareceu para reaparecer imediatamente do outro lado do vale. Como não podia voltar sozinho para a floresta, Túndalo levantou-se e aproximou-se do início da ponte tentando ganhar coragem. Só então percebeu que a longa tábua tinha cravos aguçados espetados nalguns pontos e que teria de ter muito cuidado para não espetar os pés. Inspirou profundamente e tentou concentrar-se na mão do anjo, que o esperava do outro lado. Começou a travessia avançando devagar, esforçando-se por não tropeçar nos cravos e pondo cuidadosamente um pé de cada vez sobre a estreita tábua. Apesar de ver distintamente o guia do outro lado, pareceu-lhe que a ponte era maior do que julgara, porque já estava a caminhar há algum tempo e ainda nem a meio tinha chegado. Parecia-lhe mesmo que quase não tinha saído do mesmo sítio, embora continuasse a andar firmemente, com os olhos postos alternadamente no guia e nos cravos espetados na tábua. Doíam-lhe os músculos da tensão e do esforço e sentia-se tão sozinho que a dor se tornava insuportável. Queria pelo menos poder parar um pouco, sentar-se e talvez chorar mas tinha a certeza de que, se parasse, não conseguiria recuperar o equilíbrio que o mantivera até agora a salvo das goelas do monstro das duas cabeças. Para não pensar nisso, começou a trautear uma cantiga muito velha, que costumava cantar em criança, quando brincava com os outros rapazes. Só se lembrava de uma quadra mas repetia-a interminavelmente.
Ah, parecia que já tinha ultrapassado o meio da ponte, quase sem dar por isso. A mão do anjo estava tão perto! As dores desapareceram instantaneamente, e sentiu que a ponte deixava de estar assente no topo das duas montanhas que ligava. Na verdade, a ponte parecia flutuar e o monstro e o negro vale lá em baixo tinham desaparecido. Estava envolto numa névoa rosada e odorífera e saltar da ponte para se enterrar nela como se de um monte de feno se tratasse era precisamente o que lhe apetecia. Afinal não precisava de chegar ao outro lado, podia saltar da ponte porque não havia vale nenhum e não precisava do guia para nada. A euforia enchia-lhe o peito e começou a pensar que talvez tudo aquilo não tivesse passado de um sonho. Anjos, diabos negros, almas derretidas no fogo? Onde fora buscar tanto disparate? Nunca se sentira tão bem na sua vida, tão plenamente flutuante e etéreo! Ah, precisava mesmo era de ralhar com o taberneiro, que andava a dar-lhe não sei o quê que o fazia ter visões!
Começou a rir-se com gosto, estremecendo os ombros a ponto de pôr em risco o seu equilíbrio sobre a ponte.
- Túndalo ! Túndalo ! Estás quase a chegar ! Olha a minha mão !
O riso gelou-se-lhe na garganta. Era a voz do anjo! Mas onde estava o patife? Tentou ver através da névoa suave de odor adocicado e pareceu-lhe divisar a mão do anjo estendida mais à frente.
- Continua, Túndalo, estou aqui!
Afinal o rapaz luminoso era verdadeiro? E porque não se deixava ele ficar naquele pequeno troço da ponte, onde nada lhe doía?
- Essa névoa que te cobre, Túndalo, tem o tamanho de um passo. Se andares trás ou para a frente terás de sair dela. Queres viver para sempre dentro de um só passo?
Túndalo entendeu que não era possível. E se o anjo estava lá, a besta também devia estar. Decidiu-se a caminhar. Faltavam apenas alguns passos. Deu-os corajosamente até agarrar a mão que o esperava.


(Continua, claro, está-se mesmo a ver que não podia ficar por aqui. Mas espero que só precisem de mais um capítulo para chegar ao fim. Ah, e as imagens, claro, tirando a última, só podiam ser do meu velho amigo Jerónimo!...)