terça-feira, 25 de dezembro de 2007

O POSTAL FILOSÓFICO

Ultrapassada que está a asteriscal quadra (vede, Capitão, o respeito por vossas artérias) de positivas afirmações de valores, proponho-vos agora uma madura reflexão sobre os limites e os limiares da existência. Aproximamo-nos do dia em que olharemos para o caderninho do ano transcorrido, riscaremos as proposições alcançadas e transferiremos para o caderninho seguinte aquelas que ainda não foi desta.
Decorridas, há postais atrás, tomadas de posição contra existencialismos literários, em que eu própria lancei sobre a sartreana náusea o anátema do ilegível, proponho agora chamar as consciências à crueza da meditação especulativa.
Quantos de nós não pensámos já que a vida é inerentemente miserável e irracional? Não nos recordamos todos da angústia sentida quando a garrafa butano se acabava (na era pré-gás natural) a meio do gel de duche?



Quantos não exclamámos já, pelo menos interiormente, «Ah, l'enfer, c'est les autres!», permitindo que o nosso vizinho de banco se deixasse descair sobre o nosso ombro, vencido por um dia de duro labor e pela barbárie injustificada da loucura quotidiana?


Quantos não lamentámos, pelo menos uma vez, o peso da responsabilidade de sermos livres e não increpámos Agostinho, o santo do livre arbítrio, murmurando: «Não tive culpa, puseram-me o cálice à frente...»



E quantas vezes, na penumbra do silêncio e da solidão, não contemplámos a lua lançando-lhe as questões primordiais: Quem somos? O que fazemos? Para onde vamos? Quem nos move?


E não recorremos logo depois à providencial ajuda divina para aligeirar o questionamento?


Ah! E sabei ainda que na literatura há excelentes romances existencialistas, sim senhor:

Graça Pina de Morais, Eulália e Jerónimo, 1969





Fernando Sabino, O Encontro Marcado, 1956:






Os dois desenhos a pastel: Cecília Ferreira



domingo, 16 de dezembro de 2007

PRESÉPIOS


Presépio vem da palavra latina que significa estábulo, que foi onde nasceu, diz S.Lucas, o menino Jesus.

No princípio não era um tema muito tratado na arte iconográfica porque se dava mais importância à representação de outros momentos da vida de Jesus, como a Paixão ou a Epifania. Por isso, nas representações mais antigas do nascimento aparecia apenas Maria com o menino nos braços, apresentando-o aos pastores e aos magos. Nada de S.José, que era figura insignificante no acontecimento. A vaca e a burra também não entravam na história, nem as ovelhas.
A partir do séc.XI, os magos passam a ser também reis, representados com coroa, e fixam-se em número de três, que era um número redondo para mostrar a globalidade das raças humanas. Portanto, um deles passou a ser preto. Aos poucos S.José foi aparecendo mas quase sempre num plano recuado em relação a Maria. No séc. XII, com a difusão dos evangelhos apócrifos, onde aparece a vaca e a burra, o presépio entra na moda e fazem-se representações ao ar livre, com mímica, nos adros das igrejas ou atrás do altar-mor. Aqui começava a história do teatro europeu. Como às vezes estas “peças” geravam desordens, a igreja proibiu-as.


No Natal de 1223, S.Francisco de Assis obteve autorização papal para fazer um presépio, que montou em Greccio com figuras de tamanho natural feitas de madeira, palha e tecido, e juntou-lhes uma vaca e uma burra vivas. O presépio populariza-se definitivamente e difunde-se por toda a Europa, graças sobretudo à promoção que dele fizeram os franciscanos.


No séc. XIV já aparece representado no túmulo de Inês de Castro em Alcobaça e não têm conta as iluminuras do séc.XV que trataram o tema:



Aqui, as regras de representação não incluíam o realismo, por isso, o estábulo é estilizado e preenchido com um manto púrpura e dourado que desce a acolher Maria e o menino. S.José fica de fora do manto.


Nunca mais o presépio deixou de inspirar os grandes pintores portugueses. Por exemplo Grão Vasco (1475/80?-1542743?), com este quadro:





Aproximando-se já da linguagem renascentista, com paisagem em perspectiva ao fundo e realismo nas figuras humanas, as vestes continuam a representar figuras da época do pintor, como se usava nos séculos anteriores, e a arquitectura do cenário continua evocativa e simbólica.



Neste outro, Grão Vasco já adopta a representação realista do espaço e faz-nos sorrir com a particularidade da representação do mago negro como um índio brasileiro, em clara “actualização” do Natal vista por um pintor curioso pelas mais recentes novidades:






No séc. XVII, Josefa de Óbidos (1630-1684) não esqueceu o presépio, por exemplo aqui:





Ou neste outro, de enorme intensidade dramática graças aos fortes contrastes de luz e de sombra e onde Maria e José são substituídos por Francisco e Clara, numa belíssima evocação romântica da ligação amorosa dos dois santos de Assis:


quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Cinco livros famosos ...

.... de que não gostei.

Aviso prévio:
Isto NÃO É uma corrente! É apenas uma confissão pública de desgosto, inspirada por uma recente onda de desgostosas confissões.

Não gostei d'O Ano da Morte de Ricado Reis (José Saramago, 1984):



Inesquecível, a descrição de Laura como uma criada de pensão, lubricamente desejada enquanto lavava as escadas, e os ressentimentos marxistas (?!) trazidos à mente do monárquico Ricardo Reis, enquanto passava pela sopa dos pobres. Tudo embrulhado em sintaxe gratuitamente desfeita e em oportunidade comercial de centenário comemorativo.
Não gostei d'O Velho e o Mar (Ernest Hemingway, 1952):
Inesquecível, a patética ilusão humana de vitória sobre as forças da natureza e de desafio à divina providência pela morte de criaturas não racionais. A crueldade como elemento de qualificação do herói em meados do séc. XX ?
Não gostei de Capitães da Areia (Jorge Amado, 1937):

Inesquecível e mais patética ainda, a iniciação do herói através da perseguição e da violação de meninas indefesas e de rapazinhos estigmatizados. Insuportável a sugestão de que as vítimas se conformam com o seu destino de despojo de guerra.

Não gostei d'A Náusea (Jean-Paul Sartre, 1938):





Com muita pena, porque sou admiradora entusiástica de todo o teatro sartreano. Mas nesta prosa encontro excesso de capacidade mimética: cada página desencadeia enjoos e tonturas angustiantes.


Não gostei de Vale Abraão (Agstina Bessa-Luís, 1991):




Com muita pena também, pelas gratas horas de Sibila e por ver um bom tema com grandes personagens esvair-se numa narrativa errática e inconsistente.


(E agora que venham os moralistas da cultura indignar-se e protestar contra o atrevimento.)





domingo, 9 de dezembro de 2007

Os cinco de um certo topo

Este post resulta de um supersticioso respeito pelas correntes.
Não quero que nada de mal aconteça aos meus amigos.
Os pedidos de eleição dos cinco filmes ou livros ou músicas ou pratos preferidos é sempre um bocadinho desconcertante. Escolher quais, entre tantos de que se gosta? As obras-primas? Os que, sem o serem, por alguma razão nos fizeram piegasmente chegar a lágrima ao canto do olho? Os que, sem nos arrepiarem o braço, nos deixaram porém a pensar durante as duas horas seguintes? Os que não mostravam nada de novo mas tinham uma magnífica banda sonora? Os que, sem uma grande história nem uma especial eficácia narrativa, tinham aquele brilhante desempenho daquele brilhante actor?
Fiquemos por aqui. Cheia de compaixão pelos jurados das Academias que oferecem palmas, óscares e outros troféus, apresento a minha lista, sem critérios. Só porque sim.
Inevitavelmente, os americanos. O único filme sobre o Vietnam que não é só um filme sobre o Vietnam: The Deer Hunter, Michael Cimino, 1978




Um filme de evocações e trágicas grandezas: The Rose, Mark Rydell, 1979




Um filme sobre a posse: Out of Africa, Sydney Pollack, 1985





E dois italianos recentes (deixo as antiguidades para o Cuore):




Cinema Paradiso, Giuseppe Tornatore, 1988



La Vita è Bella, Roberto Benigni, 1997




Uma vez que os cortes de corrente nos deixam às escuras, aqui vai o convite:
Lizzie
Musashi
Around These Words
Capitão Haddock
Madame Maigret

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Reviver a moda em cabelos

Depois de um século inteiro a reciclar a moda do século XX, está na hora de assumirmos corajosamente reviver modas mais antigas. Em vez de recuperarmos mais uma vez as calças à boca de sino dos anos 70, as saias evasé dos anos 50 ou as cinturas descaídas dos anos 30, proponho que pugnemos por uma moda verdadeiramente revivalista.
Comecemos pelo regresso a uma merecida atenção prestada aos cabelos e à arte de os acondicionar.
No século XV, como nos anteriores, uma autêntica senhora não mostrava os cabelos. Poderoso atributo erótico, devem manter-se escondidos ou domados sob toucas e toucados, nos quais se exprime o status e a personalidade de quem os usa. Lamentavelmente, os nossos estilistas têm descurado este importante adereço.
Eis um modelo simples e discreto, que poderíamos usar numa ocasião formal onde não ficasse bem dar demasiado nas vistas, por exemplo num almoço de convívio com a família do namorado. Assim fez a Infanta D.Leonor, filha de D.Duarte, quando foi pela primeira vez ao encontro (1451) do seu esposo, o Imperador Frederico III da Alemanha, com o qual já tinha casado por procuração, em Lisboa:


Para uma festa mais extravagante, por exemplo uma nocturna ida ao Lux, poderíamos colher muito boa inspiração neste magnífico toucado de Isabel de Portugal, Duquesa da Borgonha, esposa de Filipe o Bom, com o qual casou em 1430:


Pessoalmente, confesso que prefiro este modelo sóbrio e requintado da sua neta, Maria de Valois, que teve fama de ser mulher de personalidade forte e determinada. Fácil de combinar com um tailleur de corte executivo, é o mais adequado para reuniões profissionais movimentadas e dinâmicas:


Numa tarde de Verão, passada entre amigos, esta touca de Isabel a Católica, rainha de Castela, possui leveza e sensualidade. As tranças, ao mesmo tempo que sugerem sedução, permitem encarar com confiança o vento de uma esplanada sobre as praias da Linha:

Para as mais ousadas e temerárias, aqui fica a sugestão da filha, Joana, a Louca, de Castela. O cognome veio-lhe do indecoroso costume de se apresentar em cabelos, por isso este interessante e arrojado penteado deve guardar-se para aquelas noites especiais, de encontros íntimos:

Por fim, uma touca em pedras preciosas, ajustando os cabelos bem penteados da Princesa Santa Joana, que morreu em Aveiro em 1490, sublinhará em qualquer olhar feminino um certo tom de mistério que deixará fascinado o sexo oposto num primeiro encontro:

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

O RATO. Última Parte.

Resolvera ceder no fim-de-semana seguinte a uma ida à praia. Estava o bom tempo de um Abril generoso e ela estivera ocupada toda a semana em compromissos profissionais. Nas raras vezes em que se haviam avistado no tribunal só a linguagem dos olhos os ligara. Sentira-se no topo da escada da Sala Magna elevado por fios invisíveis de comoção. Apetecera-lhe contar aos colegas, aquela mulher lindíssima, Laura Peres, que ali vai, é minha. O Rodrigues teria corado de vergonha pelo seu carro desportivo, pelos risinhos da Celeste. Mas não podia. O silêncio era a chave do sucesso, mesmo que fosse capaz de prever que com o tempo aquele segredo tornar-se-ia insuportável. Não poderia continuar a olhá-la do patamar de baixo da escada eternamente. Os sentimentos confundiam-no. Precisava de estar a sós com ela, voltar a sentir-se reflectido na íris azulada dos seus olhos. Por isso resolvera ceder quando lhe ligara a convidá-la para sair no sábado e ela propusera a praia. Era preciso alimentar a chama, vencer a distância da semana. Escolheram a Roca Velha, uma pequena enseada de areia quase deserta no fundo de uma escarpa que se descia de mão dada, para a proteger das quedas. Fora uma boa escolha. Não esqueceria nunca o momento em que ela poisara a mochila e correra para a borda de água, a tomar-lhe a temperatura. Ele olhava-a cá de cima. O gesto prolongado com que ela desabotoara o vestido e na contraluz de um sol magnífico e escultor se lhe revelara, nascida de um bikini vermelho como uma concha rosada, provocara-lhe um choque. Estremeceu. Tinha de ter aquela mulher. O desejo de lhe tocar, de ser ele a despi-la, e a recomendação de prudência secavam-lhe a boca, humedeciam-lhe as mãos. Lutou com a emoção correndo para a água e mergulhando.

O dia decorreu com a liquidez de uma tela de Hollywood. Comeram uvas à sombra dos rochedos, perseguiram-se dentro de água, deitaram-se ao sol de mãos dadas, falando de quase nada. Não ousavam falar do futuro mas pareciam ter mergulhado no tranquilo entendimento de quem tinha um longo passado em comum. Ele notou, sorrindo de felicidade, que ela nunca mais mencionara o documento, não voltara a pedir-lhe que o procurassem, parecia ter esquecido completamente o assunto. Quase não era, ali recortada pelo sol e pela moldura dourada de areia, a mesma Laura Peres entronizada em finos saltos altos profissionais. Era verdade. Uma mulher apaixonada rende-se ao braço que a ampara. Com o tempo e com a consumação da paixão, ele acabaria por ser o seu esteio. Claro, nunca poderia pedir-lhe que deixasse de trabalhar porque o seu ordenado de oficial de justiça não seria suficiente mas, quando tivessem filhos e ela fosse solicitada pelas atenções da maternidade, fixariam um limite com o qual poderiam esperar viver aceitavelmente sem ter de a ver subir a toda a hora a escadaria do tribunal. Lá em cima tinha-a menos e regressava invariavelmente ao primeiro dia em que ficara cá em baixo a achá-la inacessível.
Chegava o tempo. As semanas tinham passado numa felicidade calma com que ele vestia a impaciência do seu desejo. Quando sugeriu um jantar em sua casa ela nem se sobressaltou. Aceitou imediatamente como o passo naturalmente à frente dos que tinham dado. E agora ali estava a tocar à campainha e ele a recebê-la de braços abertos, uma taça de vinho na mão, a música calma, o aroma adocicado das velas, o jantar quente na mesa. Tudo perfeito. Ela sorria. Olhou em volta, parecia acolher com agrado os preparativos. Desculpou-se pelo atraso.

- Venho do médico – disse – não, nada de mais – apressou-se a explicar perante o seu ar preocupado – é só um princípio de gripe. Poisou em cima da mesa um saco de supermercado e tirou de lá umas latas de coca-cola. – Não posso beber vinho, por causa dos medicamentos, trouxe isto.

Era uma pena, o vinho com que tivera tanto cuidado. Mas o importante era que ela se sentisse bem. E afinal a paixão era tão evidente que poderiam bem dispensar o atordoamento do álcool. Senti-la entregar-se com completa lucidez poderia mesmo ser mais inebriante do que qualquer outra coisa. E ela estava tão feliz!... Quis substituir as taças por copos, fez questão de ir ela mesma à cozinha e trouxe de lá a coca-cola já servida, depois de o ter empurrado para a mesa, onde a esperou, prevendo outros jantares, ela cuidando para que tudo estivesse ao gosto dele. E ela despida pela penumbra das portadas do quarto entreabertas e ela acordando tranquila em manhãs sucessivas.

Conversaram como sempre, disto e daquilo. Contou-lhe como encontrara aquela casa, como a decorara sozinho, falou da vida dos vizinhos, das boas relações com a porteira, enfim coisas do seu mundo cujo limiar ela acabara de atravessar, coisas entrecortadas de risadas, de sorrisos, de mãos dadas sobre a mesa. Estava tudo perfeito. Sentia-se realmente inebriado, como se o vinho tivesse sido bebido. Fraquejavam-lhe as pernas, antevia a madrugada e sentia ir-se-lhe dos músculos uma muito antiga pressão, aquela vaga sensação de arrependimento que o acompanhava desde criança, aquele insidioso nó de garganta que lhe ficara desde o divórcio da Luísa. Tudo se lhe soltava num conforto novo, como se o corpo não lhe pesasse, como se o ar não precisasse de ser respirado para sobreviver.

Chegara a hora da recompensa. Ela merecia e ele queria definitivamente selar uma etapa e avançar para uma vida séria. Acabadas as sobremesas, levantou-se e procurou numa gaveta uma folha de papel azul. O documento do processo. Tinha uma certa pena de se desfazer dele. Afinal fora a sua carta secreta no jogo da felicidade, evocá-lo guardado numa gaveta da sala dava-lhe uma sensação de segurança semelhante à certeza da presença do Jeremias à sua espera todos as noites, a certeza das coisas bem feitas, a segurança das conquistas por mérito próprio. E ela nunca mais tocara no assunto, seria uma surpresa, embora suspeitasse de que a recuperação do documento tinha deixado de ser uma prioridade já há algumas semanas. Nem se lembrara de lhe perguntar como ia o andamento do processo. Talvez ela até tivesse encontrado uma solução alternativa e já não precisasse tanto do papel. Laura Peres, a advogada diligente, já devia ter resolvido o assunto. Assim o seu gesto seria mais um acto de amor, como a oferta de um ramo de rosas, inúteis mas simbólicas.

Quando ele regressou ao sofá com a folha na mão, ela não parecia compreender. Ele sentou-se ao lado dela, pousou a folha na mesinha e pegou-lhe na mão. Aproximou-se para a beijar. Ela mostrou um sorriso disponível mas então reparou no papel e suspendeu o beijo.

- O que é isso? – interrogou, com curiosidade. Ele pegou na folha:

- Isto… Estive ontem a fazer umas arrumações lá no escritório e vê bem o que eu encontrei… o documento do caso Dias Nabais que tinha desaparecido…

- A sério?... – A indiferença dela encheu-lhe a alma. Pôs-lhe o papel na mão. Ela varreu-o com os olhos e acenou com a cabeça, confirmando a identificação do documento.

Agora levantar-se-ia, abraçá-la-ia por trás, cingindo-lhe a cintura fina com as mãos, desapertar-lhe-ia a camisa. Pousou o copo de coca-cola que ela tinha enchido pela terceira vez e soergueu-se. Sentia-se esvaído de todas as forças, o coração batia-lhe aceleradamente, uma paixão afogueada impunha-lhe a necessidade de a beijar, de se perder nos recantos mais ignorados do corpo dela. Encostada à mesa ela olhava-o sorrindo. Não conseguiu levantar-se. Ela sorria. Chamou-a para junto de si com a mão. Ela não veio. Mas sorria.

- O que se passa? – perguntou. Inquietou-se. Tinha a sensação de que algo estava errado mas não compreendia o quê.

Ela começou a levantar da mesa o prato, copo e talheres com que tinha comido. Ele insistiu em levantar-se mas não foi capaz. Começou a ficar alarmado. O que estava ela a fazer? Porque continuava a sorrir quando ele não conseguia mexer as pernas? nem os braços?

- Laura, vem cá! Passa-se qualquer coisa, acho que não me sinto bem.

Na cozinha, ouviu o barulho da água do lava-loiça, depois as portas dos armários a bater. Porque estava ela a lavar e arrumar a loiça em que tinha jantado? Porque não se preocupava com ele?

Quando ela voltou à sala ainda sorria e ele percebeu definitivamente que alguma coisa muito grave estava a acontecer. Sentiu-se alcançar pelo pânico. O instinto de fugir enlouquecia-lhe o coração e embatia nas suas pernas mortas, inertes, inúteis. Ela arrumou toda a sala, fez desaparecer as velas e a maior parte das latas de coca-cola num saco de plástico que colocou junto da porta. Calou a música e ligou a televisão. Tirou da mesa a toalha recolhendo as migalhas da sobremesa com cuidado. Procurou nas gavetas e encontrou um individual sobre o qual voltou a pôr o prato dele, espalhando em volta as migalhas recolhidas e duas latas de coca-cola vazias. Pegava em tudo protegendo a mão com um guardanapo de papel que depois guardou no bolso das calças.

Virava-se agora para ele, enfim. O mesmo sorriso parecia gravado para sempre nos lábios maduros que ele não chegara a colher.

- Então, estás confortável? – olhou-a horrorizado. Compreendia finalmente. – Queres que te conte uma história para adormeceres? Era uma vez um ratinho. Que vivia num buraquinho escuro da floresta. Como tinha muito medo de sair porque se achava muito fraco perante os predadores, resolveu enriquecer a sua dieta e começar a comer insectos para ficar mais forte e poder encarar a vida com outros olhos. Caçava-os numa armadilha onde deixava todas as noites um pedaço de fruta para os atrair. Ficava à espreita e, quando o insecto poisava as patas na fruta pegajosa, zás! comia-o de uma dentada, misturado com a fruta, doce e inebriante. Um dia o indiozinho Araré passeava na floresta e viu a fruta. Viu também o ratinho, embora ele vivesse a maior parte do tempo escondido, com medo dos animais grandes da floresta. Mas sempre se conseguia ver o focinhito à espreita, por entre os troncos que disfarçavam a entrada da toca e o indiozinho tinha um olhar certeiro e fino. Vá-se lá saber porquê o ratinho achou Araré apetitoso e como ele não tinha garras nem presas afiadas achou que poderia caçá-lo como aos insectos e fornecer-se de carne fresca e tenra para muitos invernos. Ficaria forte e grande como a onça e poderia finalmente sair para passear na floresta sem receio. Nessa noite carregou para a armadilha toda a quantidade de fruta que pôde e esperou. Estava ansioso por fincar os dentinhos afiados na carne tenra e morena de Araré. Pensava tanto nisso que não reparou na flecha que o indiozinho trazia e que disparou mal chegou, antes de pegar na fruta. Os índios da Amazónia envenenam as pontas das setas com a seiva de uma planta que paralisa o sistema nervoso periférico das vítimas. Assim, os animais permanecem vivos e conscientes por muito tempo mas não conseguem mover qualquer músculo e os índios apanham-nos sem dificuldade. Só várias horas mais tarde é que morrem, por asfixia, porque os músculos não se contraem e impedem os movimentos respiratórios. É claro que o ratinho não sabia nada disto nem conhecia o curare, por isso foi com grande pena que viu o indiozinho levar a fruta que ele carregara toda a noite antes de morrer sufocado. Todos os índios conhecem esta história que explica por que razão não se deve tocar em nenhum alimento que tenha sido contaminado por urina de rato. É que depois deste dia, os ratos passaram a expelir pela urina um veneno semelhante. Quando o meu pai esteve na Amazónia, os índios explicaram-lhe que devia ter muito cuidado com a urina dos ratos e mostraram-lhe como se extrai o veneno da planta que o produz. O meu pai trouxe algum, que mandou analisar e que ainda guarda em casa. Mostrou-me o frasco recomendando-me que tivesse muito cuidado com ele porque bastam algumas gotas para produzir efeito. Nunca me esqueci do aviso e sou sempre muito cautelosa com latas de bebida que estiveram muito tempo guardadas em armazém. Nos armazéns há muitos ratos e é preciso limpar muito bem as latas antes de as abrir.

Laura Peres levantou-se. O sorriso não se tinha alterado. Vestiu o casaco, pegou na folha azul do documento, guardou-a na mala e saiu devagar, fechando a porta silenciosamente e deixando-o só. Talvez tudo aquilo fosse apenas uma história para o atemorizar, para se vingar do incidente do documento. Sentia-se perfeitamente lúcido, só o corpo não respondia às suas ordens. Tinha de fazer um esforço para reagir, tentar levantar-se. Ela não o amava. Como uma seta, a evidência rasgava-lhe o coração. Ele tinha-lhe dado tudo de si, o melhor do que era e ela não o amava. Tinha de chegar ao telefone e pedir ajuda.

Ouviu um troc-troc conhecido. No canto da parede que o aparador deixara descoberto depois de ser arrastado, vislumbrou então um novo buraco no rodapé. Um narizito conhecido. O Jeremias encontrara uma alternativa para o buraco tapado. A casa era de construção antiga, devia ter túneis escavados por toda a parede, bastara-lhe roer uma nova saída. Aí vinha ele na sua direcção. Parou à sua frente esperando pelo pedaço de queijo que a sua mão não lhe estendia. Depois avançou, subiu heroicamente pela sua perna e, como não encontrasse oposição, trepou-lhe pelo peito até ao ombro. Não sentia nada mas percebeu que o Jeremias alcançara a sua orelha e começara a roê-la devagarinho, com pequenas dentadinhas certeiras. Como num sonho, viu-o instalar-se confortavelmente na sua cabeça e cofiar os bigodes, acariciando o rosto de rato com um gesto muito seu.







terça-feira, 27 de novembro de 2007

O RATO. Parte 3.

Entraram num barzito onde ele costumava passar todos os dias. Nunca entrara. Para quê? Que faria sozinho num bar? Vistas de fora as cores quentes das luzes interiores pareciam-lhe acolhedoras como as chamas de uma lareira a que não tinha direito. Mas agora não entraria sozinho. Escolheu uma mesa do fundo, mandou pedir cocktails e puxou a conversa. Primeiro falou do tempo, evasivo, a maldizer a chuva, a rir-se dos que já não teriam um fim-de-semana estendidos ao sol, na areia da praia. Depois introduziu-a numa confusão conveniente. Se ela não teria o papel em casa, se teria visto bem, porque essas coisas às vezes acontecem, o que queremos muito estar mesmo debaixo do nariz e não vermos. Ela sorria. Que não, que tinha revirado tudo e ele concordara que tinha visto o papel no processo… Ah, pois, claro, parecia-lhe que sim, certeza, porém, era difícil… Agora era importante falarem de si, por isso conduziu a conversa para as carreiras, uma mulher como ela gostaria do tema. Como ele costumava ter tudo sob controlo, nunca perdera um documento, por isso o chefe se apoiava nele, era preciso estar de olho também no trabalho dos outros, hoje em dia, já se sabe, ninguém quer saber da causa pública, bem se via pelos colegas, era um desleixo, uma indiferença… mas o chefe bem sabia que podia contar com ele. Ela concordava, começou a falar, aos poucos os olhos iluminavam-se e ele percebeu que estava a conquistá-la. Era altura de ir chegando a outros pontos. As mulheres admiram homens com filosofia de vida. O trabalho. O trabalho sério e honesto é que era o caminho. Para ele nada tinha sido fácil, tinha lutado pelo seu lugar. E não era pouco, toda a gente sabe como são as coisas no país, os lugares conseguem-se com cunhas, não há verdadeiro reconhecimento do mérito. Outros tinham a vida facilitada, o Rodrigues, por exemplo, toda a gente no tribunal sabia que ele tinha um tio no Ministério, por isso é que o chefe o promovera e não se permitia comentar-lhe as saídas antes da hora. Enfim, não era fácil singrar num país assim mas quando se tem princípios… Ela concordava com a cabeça que era isso mesmo, na advocacia também só singravam os grandes escritórios, onde os advogados de prestígio metiam os filhos e os sobrinhos. Por isso é que ela fazia tanto empenho na defesa do figurão do papel desaparecido, que estava inocente e a ser tramado por uma quantidade de corruptos, era uma questão de princípio…
Irmanados pelo amor à causa pública, sorriram em uníssono, próximos da felicidade. E o que fazia ela nos tempos livres? Mal fez a pergunta arrependeu-se. Fora demasiado directo, demasiado óbvio e ela arrepiaria caminho. Ah, parece que não!... Que susto! A resposta vinha tranquila e banal, cinema, leituras em casa ou na praia, o costume. Ia ao ginásio, só às vezes. Ainda bem, que ele não tinha paciência para grandes correrias à revelia de tapetes electrónicos… Se ela gostava de um estilo de vida natural ele tinha alternativas. Contou-lhe que gostava de visitar o jardim zoológico. Fora barra em Ciências Naturais, no liceu. Sabia as espécies e as classes todas de cor e em latim! Nunca mais se esquecera. Desde os tempos em que o pai era director do liceu que lhe ficara aquilo, fora uma forma de impressionar o pai, mas claro que isso não lhe ia dizer, contara uma vez à Luísa e ela rira-se dele. E lá no fundo continuava a guardar a mágoa da época em que o pai não se calava com os louvores à Irene, a filha do senhorio do prédio em que moravam, que era aluna do pai a Português. Como ela cantava os verbos todos, nunca se enganava nos tempos compostos e no 5º ano sabia o canto I dos Lusíadas de cor, e papagueava aféreses e apócopes e toda aquela tralha linguística que não servia para nada. No dia em que a Irene o apanhara a olhar-lhe para as pernas no balneário da ginástica e lhe pregara um estalo ele jurara-lhe ódio mortal e eterno. Passara uma semana a decorar o latinório da zoologia, fizera uma corte discreta mas sólida à professora de Ciências porque sabia que nelas a Irene era mais fraca, tinha aversão a bichos. Fizera um trabalho de casa magnífico, com colagens dos animais, mas a glória tinha sido no dia da apresentação na aula, depois do trabalho fraquito da Irene, quando ele tinha ido ao quadro e explicado aquilo tudo à turma, com os nomes muito bem ditos em latim. A professora ficara encantada e fizera-lhe um elogio rasgado ao pai… Bem, não podia pôr-se agora com aquelas recordações, aproveitou para a convidar para ir ao jardim zoológico no dia seguinte. A alma estalou-lhe de alegria quando a viu aceitar sem hesitações. Não falou mais do documento, parecia ter esquecido o assunto e estar mais preocupada com a melhor hora para se encontrarem.
O arroz estava pronto, só tinha que o deixar repousar para secar um pouco. Verificou mais uma vez a temperatura do vinho e pensou que não seria nada bom se o Jeremias resolvesse aparecer a meio do jantar. Algumas mulheres têm medo de ratos. Podia estragar tudo. Mais tarde, claro, haveria de lhe falar do Jeremias. Orgulhava-se dele e ela havia de perceber isso. Mas por enquanto recomendava-se prudência. Primeiro queria vê-la nua à sua frente, entregue aos seus beijos, disposta a tudo por ele. Parou, extasiado. Ela, nas suas mãos. Despi-la lentamente, abrir-lhe o desejo suavemente, entrar na doçura quente das suas curvas. Um barulhinho familiar acordou-o a tempo. Aí estava o Jeremias a olhá-lo com os seus olhinhos espertos e o focinho a aspirar vestígios de queijo. Não podia definitivamente arriscar-se. Cortou vários pedaços de queijo que empurrou para dentro do buraco na parede e, depois de ver o rato entrar atrás deles, puxou o aparador de modo a tapar o buraco. Talvez a Laura não achasse aquele mus musculos tão interessante como os bichos que ele lhe mostrara no zoo. Como ela rira nesse dia! Estava tão feliz! Deram as mãos pela primeira vez. Ela nem se apercebera quando ele lhe pôs o braço no ombro e não o afastara. Ria-se com as imitações dele: Sra. Peres, tenho o prazer de lhe apresentar o Sr. Panthera Tigris!
Tinham almoçado no restaurante do jardim. A vista era bonita. Ela falara-lhe do pai. Parecia gostar muito dele. Era um antropólogo, professor universitário já reformado, com uma vida cheia de aventuras. Fizera investigação entre os índios da Amazónia, vivera meses com eles completamente isolado do mundo, conhecia profundamente a sua cultura. Os seus olhos brilhavam ao falar do pai, o que o desconcertou um pouco. As mulheres que admiram o pai como herói têm dificuldade em render-se a outro homem. Uma pontinha de ciúme. Era difícil competir com um pai tão fascinante.
Resolveu falar do seu pai. Contou como o pai fora perseguido pela pide e estivera preso por proteger estudantes contrários ao regime e se juntar com intelectuais rebeldes em tertúlias clandestinas. Na verdade, não fora preso, mas podia bem ter sido. A mãe, pelo menos, bem o avisava e dissera-lhe várias vezes que se deixasse de conversas perigosas. Mas o pai era esperto. Realmente, mantinha conversas comprometedoras com o Dr.Almeida Costa da livraria, e com outros dois ou três professores do liceu que estavam muito ligados ao Partido Comunista. Eles é que lhe tinham pedido abrigo num barracão de jardinagem do liceu para o Afonso Freitas, aquele do 7º ano que se tinha metido em confusões com uns panfletos e era filho de um farmacêutico comunista. O pai ficara aflito, não queria perder a admiração dos colegas a quem lia às vezes poemas seus mas também não queria problemas com a polícia nem com a mãe, que não era para brincadeiras. Pagara as viagens ao rapaz para ele fugir para França e o caso ficara assim encerrado. Pura sorte, porque a polícia podia ter sabido do assunto (eles não sabiam sempre tudo?) e o pai podia ter ido parar a Caxias.
O pai contara-lhe a história já depois do 25 de Abril, quando ser contra o regime se tornou uma forma de heroísmo que todos desejavam a ilustrar-lhes a linhagem. Explicara-lhe então que também tivera a sua parte nessa luta desinteressada pela liberdade e que a História é injusta quando só recorda os mártires porque é mais difícil resistir levando uma vida cívica activa e norteada por princípios do que entregar-se à polícia. Os fiéis veneram os que morreram entre as garras dos leões e mancharam as arenas de sangue e esquecem os que ficaram em casa a rezar por eles. Havia uma heroicidade diferente no seu pai, uma luta pela liberdade menos vistosa, é certo, mas nem por isso menos heróica. É claro que a Laura não perceberia isso porque não tinha conhecido o seu pai, por isso o melhor era falar-lhe de uma heroicidade mais fácil de perceber. E acertou em cheio. Ela ficou interessada, fez perguntas, como tinha sido a sua infância. Hesitou. Não sabia bem se lhe contaria aquela sensação de permanente e vago arrependimento, que o acompanhava desde pequeno. Seria bom obter dela alguma compaixão, um afago no rosto, talvez, as mulheres gostam disso, é o instinto maternal. Mas talvez fosse demasiado cedo, afinal tinha apostado tudo em fazê-la entender que era ele o homem que poderia protegê-la do mundo. A infância fora, portanto, feliz, entre um pai modelo de vida cívica e uma mãe tradicional que devotara a vida a educá-lo e a apoiar o marido. E era verdade, esses eram os factos. Não tinha razões concretas para justificar nenhuma infelicidade, nunca lhe faltara nada.
(Continua...)
Fotos: Fernando Figueiredo e Francisco Garrett

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

O RATO. Parte 2.


Quando a abordara pela primeira vez usara uma desculpa idiota. Perguntara-lhe se precisava de ajuda ou de alguma informação, quando era evidente que ela não parecia nada perdida nem hesitante. Ela olhara-o de alto a baixo e respondera um “Não, obrigada!” desdenhoso que o ferira como um punhal que lhe rasgasse a garganta. Nessa altura, todo o encantamento se esvaíra num ápice e ficara-lhe só a pungente dor tão sua conhecida. Ela juntara-se ao imenso coro de olhares desdenhosos que por vezes riam cruelmente na sua memória e nas noites mais inquietas. Era como todas. Mas ao vê-la afastar-se, segura dos seus saltos altos, esguia no tailleur profissional, sorrindo ao juiz Fonseca que cruzava o seu caminho, percebeu que nunca encontraria outra mulher como aquela. Que ela teria que amá-lo por todas as que não o haviam feito. O Silvino, um companheiro de bairro, alguns anos mais velho e seu ídolo de infância, dissera-lhe uma vez:
- Todas as mulheres dominadoras estão à espera de ser dominadas. - O Silvino entrara na Escola de Veterinária e, à medida que progredia nos estudos, estes ajudavam-no a clarear as suas ideias sobre o mundo: - As mulheres mostram-se dominadoras para atraírem o macho mais forte do grupo. Só o macho mais forte é que consegue dominar uma mulher dominadora e assim fazem a selecção natural e garantem a força e a saúde dos filhos.
Na altura ele rira-se da tese do Silvino mas agora, perante aquela mulher, as palavras do velho companheiro começavam a fazer sentido. Encostado à parede, preso nos seus pensamentos e na sua muda admiração, nem dera pela chegada do Ramos, que, com uma cotovelada, o despertara do seu torpor.
- O que é que estás aqui a fazer?
- Quem é aquela? Conheces? - perguntara.
- Aquela? Estás aqui por isso? Ó homem, estás doido! É a Dra.Laura Peres, não é fruta para o teu bico! É advogada e das boas, é infalível na barra, tem massa, tem talento e é uma brasa. Não percas o teu sono por causa dela.
Sentiu que um duche frio o paralisava. Afinal era advogada. E talentosa. E rica. E, com toda a certeza, bem relacionada, habituada a escolher as companhias. Nessa noite começara a falar com o Jeremias. Enquanto ele lhe roía o queijo sobre os dedos, ia-lhe dizendo baixinho:
- Ela vai ser minha! Ouviste? Isto vai ser mais difícil do que eu pensava mas ela tem de ser minha! Podias dar-me umas ideias, Jeremias...
Fora-lhe difícil adormecer. Dava voltas à cabeça à procura de ideias. Não podia ser como com as outras mulheres. Tinha que inventar um plano para a fazer reparar nele. A ideia surgiu-lhe dias mais tarde. Ao abrir um dos processos, o coração disparou ao encontrar o nome do advogado de defesa inscrito na folha à sua frente: Laura Peres. Olhou em volta temendo que algum rubor o tivesse traído. Mas não, todos conversavam em vez de trabalhar, como de costume. Nem davam por ele. Leu avidamente a instrução do processo. Era dos importantes, um crime de colarinho branco. Um figurão político era acusado de desvio de fundos públicos. Parece que a oposição estava empenhada em fazê-lo cair e apresentava documentos contabilísticos com grandes lacunas. Mas Laura argumentava que a contabilidade era forjada e apresentava um documento com a contabilidade correcta assinado pelo figurão. Que pena, pensara ele. Estes figurões da política são todos uns corruptos! Sabem que é difícil serem condenados e aproveitam para enriquecer à custa dos cargos. Grandes casas, bons carros, viagens... Ele fartava-se de trabalhar e nem conseguira ainda comprar um carrito... Mas este ia escapar-se graças à Laura! Que sorte a dele! Salvo por um único papel!... E se não existisse o papel? O figurão era condenado e a Laura perdia a causa. O figurão não acharia graça nenhuma! Era até capaz de acusar a Laura de sonegação de provas! Parou por momentos, com o dedo de folhear meio húmido no ar. Seria uma mancha na carreira dela. A Ordem instauraria um processo disciplinar. Um único papel... uma coisita de nada que qualquer golpe de vento arrebata janela fora... Olhou em volta. Estavam todos ansiosos pelo almoço. Combinavam animadamente a escolha do restaurante e, como de costume, não lhe diziam nada. Palermas! Deixou-se ficar concentrado no processo até todos sairem e depois, calmamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo, tirou a folha azul da capa de cartolina, dobrou-a cuidadosamente em quatro e guardou-a no bolso.
O arroz a chiar no tacho soava alegremente. Provou e rectificou os temperos. Estava tão bom como o da Luísa. Nunca gostara de ter de cozinhar mas até que agora estava satisfeito por ter aprendido a fazer o arroz. A Laura ia achá-lo muito bom e ele sorriria modestamente como se não fosse nada. Como sorrira no dia em que finalmente a vira à sua frente, expectante e suspensa das suas palavras, finalmente. A coisa tinha dado grande confusão. A Laura falara do documento ao juiz Reis e este dissera que não o encontrava no processo. A Laura ficara espantada. Confirmaram, verificaram, procuraram, começaram a inquirir. Adiaram o julgamento. A Laura não parecia a mesma, o rosto toldado, cochichava pelos cantos com os outros advogados. Viera falar com o chefe. Do seu canto de sala, ele vira o chefe abanar repetidamente a cabeça. Depois apontara-o com o dedo. Ele esperara por aquele momento. Estava preparado. Na noite anterior tinha relatado pormenorizadamente ao Jeremias como tudo ia acontecer e dera-lhe uma ração suplementar de queijo. A Laura aproximara-se no alto dos seus saltos pretos e falara-lhe com uma suavidade muito diferente daquele “Não, obrigada!” de que ele já nem se lembrava. Parecia que o via pela primeira vez.
- Boa tarde! Com certeza está ao corrente do que se passa com o processo Dias Nabais... Parece que o processo esteve nas suas mãos. Queria perguntar-lhe se se lembra de ter visto um documento...
Sim, um documento em forma de folha dobrada em quatro dentro do bolso... sorria ele. Mas que não, não vira o documento. Não se lembrava de nada. Ela pareceu contrariada. Como se lhe viessem à memória recordações muito antigas, atirou-lhe:
- Ah! Espere... Ela estremeceu e ele, com ela, sentiu-se tremer sobre aquele corpo frágil. Descreveu vagamente o documento, como se lhe tivesse passado rapidamente sob os olhos. O rosto dela iluminou-se:
- Isso mesmo, isso mesmo!
Conclusão: ele vira mas não sabia o que lhe tinha acontecido depois. Não tinha nenhuma ideia de como desaparecera. E ela não podia apresentá-lo em tribunal.
- Sim, mas já é um começo. Vou estudar o assunto. Vou ver o que se pode fazer. Não se importa de se manter disponível para falar comigo?
Se se importava! Disponibilidade era tudo o que ele tinha. No dia seguinte não a viu no tribunal todo o dia. Devia estar a “estudar o assunto”. Ao fim da tarde, quase à hora da saída, viu-a finalmente chegar. Foi interceptada no corredor pelo juiz Reis, que a ocupou durante vários minutos. Resolveu sair um pouco antes da hora, como faziam os outros. Felizmente que o chefe não estava. Escusava de manchar a sua reputação impecável. Tinha que se apressar porque ela já tinha acabado a conversa com o juiz. Fez um percurso sinuoso para que ela não o encontrasse de frente mas que lhe permitisse vê-lo sair. Ela viria atrás dele. Apressou o passo na rua. Queria afastar-se rapidamente do tribunal. Pouco depois ouviu o martelar dos saltos dela. Corria atrás dele, quem diria! Sentiu-se glorioso, quando ela finalmente o alcançou e lhe pediu...
- Espere, espere...
Fez-se surpreendido, sorriu-lhe. Revelou-se-lhe em todo o seu encanto. Foi aí que ela primeiramente o viu, a ele como homem e não simples oficial de justiça. Ele amparou-a com o braço porque ela vinha ofegante e, enquanto aguardava que a respiração normalizasse, ela sentiu todo o calor da sua mão, uma mão forte e quente, de homem. Por momentos ficaram calados e ele acariciava-lhe o rosto com o olhar. Depois ela disse:
- Desculpe atrasá-lo. Estive a pensar se não poderíamos fazer uma busca na sua secretária. Os dois juntos talvez tivéssemos possibilidade de passar tudo a pente fino. Sabe que, com todos aqueles papéis e pastas, pode ter passado por ele sem dar por isso... Nunca lhe aconteceu?...
Os dois juntos. Foi aí que ele percebeu. Ela estava impressionada ou, pelo menos, atraída. Corava, parecia muito menos confiante do que lhe era habitual. Disse que sim. Que fariam isso, sem dúvida. E logo depois, disparou:
- Porque não vamos tomar uma bebida primeiro? Parece-me que ainda precisa de recuperar dessa corrida...
Fez o seu melhor sorriso, a que tentou juntar alguns sinais de preocupação que não chegassem ao paternalismo. As mulheres como ela não apreciam essa atitude. A leve hesitação que sentiu da parte dela fê-lo recear que tudo não passasse de uma ilusão sua. Na verdade, ela desprezava-o e ia rir-se-lhe na cara e ele morreria ali mesmo. Mas antes que a sua sensação de pânico se revelasse, ela respondeu:
- Claro, vamos... – a voz era suave, quase doce. Então, ele soube. Ela rendia-se e talvez ainda não tivesse sequer dado por isso. Encaminhou-a com o braço, oferecendo-lhe protecção por entre os transeuntes apressados do fim de tarde.
(Continua...)

Fotos: DaJe e Alexandre Toresan

sábado, 24 de novembro de 2007

O RATO. Parte I.

- Hoje vem! - murmurou entre dentes, acariciando o rosto num gesto muito seu e sem poder impedir-se de o dizer audivelmente, como se a emoção que sentia não pudesse caber-lhe na garganta. - É hoje! - repetiu e permitiu-se um leve sorriso, que não o trairia.
Custara-lhe concentrar-se no trabalho. Receava ter confundido os processos ou ter errado no carimbo a apor. E na contagem do número de páginas, não teria saltado alguma? Esperava que não. Era um bom funcionário. Tomava sempre muito cuidado para não se enganar em nada, não só por ser de natureza meticulosa mas porque não suportaria que o repreendessem. Desde o primeiro dia naquele emprego jurara a si mesmo que nada correria mal. Estudara o chefe, os seus gostos e os seus hábitos, procurava sorrir-lhe descuidadamente e fazer tudo conforme ele desejaria sem que tivessem de lho dizer. Não gostava de receber ordens. Por isso procurava antecipar-se a elas. Sabia, no seu íntimo, que o chefe o apreciava, a sua eficiência, o seu feitio arrumado, organizado. Gostaria que, naquele emprego, não houvesse mais do que o chefe. Os colegas pareciam-lhe sempre estranhos. Ao princípio, quando viera, cheio de esperanças e boas decisões, tentara conviver. Acalentara mesmo a esperança de uma amizade, que nunca mais tivera desde os seus tempos de liceu em que era um rapaz como os outros, com o futuro pela frente. Depois, bem... era melhor não pensar nisso.
Arrumou os arquivos, alinhou as canetas e as borrachas e preparou-se para sair. Eram 5 horas. Espreitou a rua. Chuviscava. Felicitou-se por ter trazido a gabardina, apesar de o sol com que se anunciara o dia não fazer prever a noite chuvosa. Os colegas não se tinham prevenido. Claro, nenhum pensava no futuro, como ele. Uma onda de enorme satisfação acalentou-o ao pensar que iriam agora olhar com arrependimento para a sua gabardina. Os colegas já se tinham levantado. Nunca esperavam pelas 5 horas para se prepararem para sair. Olhou-os de soslaio. Antes, doera-lhe que tivessem respondido às suas tentativas de aproximação com uma meia distância, primeiro curiosa, indiferente logo depois. Agora, porém, isso já não o desgostava. Afinal, eles não sabiam... Viu o Rodrigues apontar os chuviscos à Celeste, rindo. E ela, tonta, aproveitava para se abrigar no braço que ele lhe oferecia... Deixá-la lá! O Rodrigues era um pedante! Pelo visto, ela gostava das gravatinhas janotas e dos perfumes caros que ele usava! E com certeza também dos amigos dele, do carro vermelho, das discotecas onde ele conhecia o porteiro, dos almoços nas esplanadas... E aquela gargalhada dele? Devia ser disso que a Celeste gostava, de barulho! Afinal, ela era como as outras. Ele já não se interessava por ela. Fora um disparate achá-la sedutora, só porque tinha um ar independente e era bonita. Ele deveria saber há muito que essas mulheres não sabem dar valor a um homem a sério, capaz de se dedicar. Gostam de mostrar que são mais do que os homens. Lembrava-lhe a Luísa, que ele decidira esquecer depois do divórcio.
O céu escurecia. Foi andando devagar pela marginal. A chuvinha não o incomodava. Pensava na noite que o esperava. Conseguira. Como ele sempre soubera. Há já duas semanas que planeara tudo para quando ela viesse. Não tinha muito jeito para essas coisas de que as mulheres gostam, como velas e música romântica, mas fizera um esforço. Pedira até a ajuda da empregada da loja no dia em que comprara o vinho. Qual o melhor vinho para um jantar de noivado? Íntimo?, perguntara a rapariga, e ele sorrira cumplicemente. Estava tudo pronto. Restava-lhe esperar. Prolongou o caminho até casa. Parou na banca de jornais do costume. Comprava o semanário todas as sextas-feiras. Costumava lê-lo de uma ponta à outra nos seus enormes fins-de-semana. Não tinha mais nada para fazer. Mas ultimamente tudo mudara e os fins-de-semana eram diferentes. Não tinha tempo de ler o jornal. Por isso o acto de o comprar tinha um sabor especial que só ele conhecia. Olhou os transeuntes com uma certa pena. Caminhavam apressados para os seus fim-de-semanazinhos insignificantes, televisão, talvez futebol, talvez um passeio pelas esplanadas da praia...
Tomé, o cego, estava no seu posto. Conheceu-o logo pela voz quando ele deu as boas tardes. Tirou o jornal rindo-se intimamente da brincadeira que todas as semanas fazia. Pagava com muitas moedas pequenas, às quais faltavam sempre 2 cêntimos. O pobre cego nunca dera pela falta. Ainda agradecia no fim. Pobre diabo! Deixava-se enganar como um pato! Havia naquela brincadeira um gosto que o encantava. Quando seria que o cego notaria o engano? Quase apostava consigo mesmo. É hoje, não é hoje!
Afastou-se pela marginal. O mar estava verde como se fosse Verão. O que não poderiam fazer nos próximos verões! Ele iria esperá-la ao escritório, ela viria ao seu encontro sorrindo, a aconchegar-se-lhe no braço. Ele protegê-la-ia na confusão dos peões de fim de tarde. Veriam o pôr-do-sol estendidos na areia da praia, como se fossem dois garotos. E ao sábado, se ele poupasse nos gastos durante a semana, poderia levá-la a jantar na esplanada, como fazia o Rodrigues. É claro que ela estava habituada a outra vida! Uma advogada não almoça uma sandes e uma cerveja, como ele fazia todos os dias. Mas afinal não fora por ele que ela se interessara? Ela sabia que no fundo ele valia muito mais do que o emprego como oficial de justiça. Ela sabia valorizar um homem. Percebera que ele era inteligente, que sabia levar a água ao seu moinho. As mulheres gostam de homens que conseguem aquilo que querem. E ela descobrira com surpresa que ele era um desses homens. E fora aí que se apaixonara por ele.
Meteu a chave à porta com o coração aos pulos. Ainda lhe custava a crer que ela se tinha de facto apaixonado por ele. Ficava emocionado quando tomava consciência de que tinha mesmo acontecido. Quem lhe diria, naquele dia… Acariciou o rosto, com um sorriso triunfante. No dia em que a vira pela primeira vez ela nem sequer reparara nele. Mas ele, ao vê-la subir as escadas do tribunal, ficara paralisado. Era a mulher mais bela que conhecera. Ao pé dela, a Luísa, que sempre lhe parecera bonita, não passava de uma professorazinha simpática. E a Celeste? Uma caixeira de perfumaria, com toda aquela maquilhagem a esconder a vulgaridade dos traços. Mas esta... Não que tivesse alguma coisa de definivelmente superior! Era o conjunto. O corte de cabelo atrevido, a pele imaculada, o fato de corte caro, o andar seguro. Os olhos pareciam espalhar domínio à sua volta, enquanto falava de modo contraditoriamente sóbrio e caloroso com os advogados que a acompanhavam. Nunca a tinha visto ali. Conhecia os advogados, eram os habituais da comarca. Pensou que ela estivesse envolvida nalgum processo, testemunha ou queixosa. O que seria? Por algum tempo ficou parado na escada, com uma pasta de instrução de processo na mão, prestes a deixar cair os documentos. Levara a mão ao rosto, num gesto maquinal, enquanto a via afastar-se e desaparecer no bar. Pensara por algum tempo ir atrás dela, arranjar uma desculpa qualquer para lhe falar. Mas não lhe ocorria nenhuma e deixou-se ficar. Como fora tonto! Deixara-se paralisar, completamente apaixonado desde o primeiro momento.
Pousou o jornal em cima do sofá e olhou para o relógio: 6 horas. Ela tinha dito que não estaria livre antes das 9. Tinha três horas à sua frente. Podia começar por recapitular tudo. A carne assada estava pronta no frigorífico. Era só ligar o forno e aquecê-la. Ela não era dada aos dotes culinários, por isso não notaria que a carne fora comprada já feita. A bavaroise de morango também. Abriu o frigorífico para confirmar a temperatura do vinho. Faltava fazer o arroz de ervilhas como antigamente via a Luísa fazer. Rezou para que saísse bem. Dizem que quando se está apaixonado tudo parece maravilhoso e, afinal, ela estava apaixonada por ele. Demorara o seu tempo... mas estava!
Ouviu um troc, troc... familiar que o irritou um pouco. Hoje não ficava nada satisfeito com a presença do seu habitual conviva. Sentou-se muito quieto e calado no sofá para que ele aparecesse. Em breve viu assomar o narizito e logo depois apareceu todo ele à espera do costumeiro presente de queijo. Jeremias, o rato. Não sabia bem porque lhe dera aquele nome mas parecia-lhe nome de rato. A sua amizade remontava aos primeiros tempos da sua estadia em Faro. Deslocado da sua cidade, num emprego novo que era a sua última oportunidade de uma vida e uma carreira como as de toda a gente, depois da longa série de falhanços, do divórcio, dos desentendimentos com a família, Jeremias parecera-lhe uma companhia aceitável e engraçada. Ocupara algumas horas da noite a estabelecer relações de cordialidade com o animal. Deixava-lhe primeiro presentes de queijo a hortas certas. Depois começara a aparecer muito quieto quando ele vinha buscá-lo e, por fim, depois de alguns meses de meticulosa paciência, conseguira que o rato viesse buscar-lhe o queijo à mão, vitória que o enchera de satisfação. Quem se poderia gabar de ter conseguido domesticar um rato?
Mas ela percebera. Ela vira nele a força interior que ele tinha e por isso se apaixonara. Não fora fácil fazê-la entender, mas fora uma vitória!

(Continua...)

Fotos: Peter M. e Francisco Garrett

domingo, 18 de novembro de 2007

O POLVO

Tenho viajado pelos mares de muitos continentes.
Neles tenho encontrado toda a espécie de criaturas.
A mais detestável é o tubarão. Nada silenciosamente pelas águas quentes, procurando passar despercebido, abocanha o que encontra pelo caminho numa luta fácil de tamanhos desproporcionados. Falta-lhe graciosidade e humor, acha que não precisa de inteligência porque conquista pelo peso e pela lei da vida e da morte.
Criatura muito diferente é o polvo.
BAILARINO. Move-se com graça e elegância em qualquer mar.



PERFORMER. Interpreta vários estilos e sensibilidades.



DECORATIVO. Combina bem com vários tons de pele.

FLEXÍVEL. Adapta-se às circunstâncias mais variadas.

INTENSO. Estrutura-se sobre si mesmo.



POÉTICO. Aprecia um belo noctuno de Chopin.





SUBTIL. Não fere o olhar.




INTELIGENTE. Estuda os hábitos dos outros habitantes dos mares e aprende com eles.

SÁBIO. Encosta-se a uma rocha e - imóvel - deixa passar os inimigos.




Porém, há certos inimigos que até o calmo e paciente polvo abomina. Quando os encontra, enfrenta-os e - para muitos inesperadamente - combate-os e vence-os. O tubarão que o diga:
(como diria o Capitão, se eu fosse a vocês clicava)