segunda-feira, 26 de novembro de 2007

O RATO. Parte 2.


Quando a abordara pela primeira vez usara uma desculpa idiota. Perguntara-lhe se precisava de ajuda ou de alguma informação, quando era evidente que ela não parecia nada perdida nem hesitante. Ela olhara-o de alto a baixo e respondera um “Não, obrigada!” desdenhoso que o ferira como um punhal que lhe rasgasse a garganta. Nessa altura, todo o encantamento se esvaíra num ápice e ficara-lhe só a pungente dor tão sua conhecida. Ela juntara-se ao imenso coro de olhares desdenhosos que por vezes riam cruelmente na sua memória e nas noites mais inquietas. Era como todas. Mas ao vê-la afastar-se, segura dos seus saltos altos, esguia no tailleur profissional, sorrindo ao juiz Fonseca que cruzava o seu caminho, percebeu que nunca encontraria outra mulher como aquela. Que ela teria que amá-lo por todas as que não o haviam feito. O Silvino, um companheiro de bairro, alguns anos mais velho e seu ídolo de infância, dissera-lhe uma vez:
- Todas as mulheres dominadoras estão à espera de ser dominadas. - O Silvino entrara na Escola de Veterinária e, à medida que progredia nos estudos, estes ajudavam-no a clarear as suas ideias sobre o mundo: - As mulheres mostram-se dominadoras para atraírem o macho mais forte do grupo. Só o macho mais forte é que consegue dominar uma mulher dominadora e assim fazem a selecção natural e garantem a força e a saúde dos filhos.
Na altura ele rira-se da tese do Silvino mas agora, perante aquela mulher, as palavras do velho companheiro começavam a fazer sentido. Encostado à parede, preso nos seus pensamentos e na sua muda admiração, nem dera pela chegada do Ramos, que, com uma cotovelada, o despertara do seu torpor.
- O que é que estás aqui a fazer?
- Quem é aquela? Conheces? - perguntara.
- Aquela? Estás aqui por isso? Ó homem, estás doido! É a Dra.Laura Peres, não é fruta para o teu bico! É advogada e das boas, é infalível na barra, tem massa, tem talento e é uma brasa. Não percas o teu sono por causa dela.
Sentiu que um duche frio o paralisava. Afinal era advogada. E talentosa. E rica. E, com toda a certeza, bem relacionada, habituada a escolher as companhias. Nessa noite começara a falar com o Jeremias. Enquanto ele lhe roía o queijo sobre os dedos, ia-lhe dizendo baixinho:
- Ela vai ser minha! Ouviste? Isto vai ser mais difícil do que eu pensava mas ela tem de ser minha! Podias dar-me umas ideias, Jeremias...
Fora-lhe difícil adormecer. Dava voltas à cabeça à procura de ideias. Não podia ser como com as outras mulheres. Tinha que inventar um plano para a fazer reparar nele. A ideia surgiu-lhe dias mais tarde. Ao abrir um dos processos, o coração disparou ao encontrar o nome do advogado de defesa inscrito na folha à sua frente: Laura Peres. Olhou em volta temendo que algum rubor o tivesse traído. Mas não, todos conversavam em vez de trabalhar, como de costume. Nem davam por ele. Leu avidamente a instrução do processo. Era dos importantes, um crime de colarinho branco. Um figurão político era acusado de desvio de fundos públicos. Parece que a oposição estava empenhada em fazê-lo cair e apresentava documentos contabilísticos com grandes lacunas. Mas Laura argumentava que a contabilidade era forjada e apresentava um documento com a contabilidade correcta assinado pelo figurão. Que pena, pensara ele. Estes figurões da política são todos uns corruptos! Sabem que é difícil serem condenados e aproveitam para enriquecer à custa dos cargos. Grandes casas, bons carros, viagens... Ele fartava-se de trabalhar e nem conseguira ainda comprar um carrito... Mas este ia escapar-se graças à Laura! Que sorte a dele! Salvo por um único papel!... E se não existisse o papel? O figurão era condenado e a Laura perdia a causa. O figurão não acharia graça nenhuma! Era até capaz de acusar a Laura de sonegação de provas! Parou por momentos, com o dedo de folhear meio húmido no ar. Seria uma mancha na carreira dela. A Ordem instauraria um processo disciplinar. Um único papel... uma coisita de nada que qualquer golpe de vento arrebata janela fora... Olhou em volta. Estavam todos ansiosos pelo almoço. Combinavam animadamente a escolha do restaurante e, como de costume, não lhe diziam nada. Palermas! Deixou-se ficar concentrado no processo até todos sairem e depois, calmamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo, tirou a folha azul da capa de cartolina, dobrou-a cuidadosamente em quatro e guardou-a no bolso.
O arroz a chiar no tacho soava alegremente. Provou e rectificou os temperos. Estava tão bom como o da Luísa. Nunca gostara de ter de cozinhar mas até que agora estava satisfeito por ter aprendido a fazer o arroz. A Laura ia achá-lo muito bom e ele sorriria modestamente como se não fosse nada. Como sorrira no dia em que finalmente a vira à sua frente, expectante e suspensa das suas palavras, finalmente. A coisa tinha dado grande confusão. A Laura falara do documento ao juiz Reis e este dissera que não o encontrava no processo. A Laura ficara espantada. Confirmaram, verificaram, procuraram, começaram a inquirir. Adiaram o julgamento. A Laura não parecia a mesma, o rosto toldado, cochichava pelos cantos com os outros advogados. Viera falar com o chefe. Do seu canto de sala, ele vira o chefe abanar repetidamente a cabeça. Depois apontara-o com o dedo. Ele esperara por aquele momento. Estava preparado. Na noite anterior tinha relatado pormenorizadamente ao Jeremias como tudo ia acontecer e dera-lhe uma ração suplementar de queijo. A Laura aproximara-se no alto dos seus saltos pretos e falara-lhe com uma suavidade muito diferente daquele “Não, obrigada!” de que ele já nem se lembrava. Parecia que o via pela primeira vez.
- Boa tarde! Com certeza está ao corrente do que se passa com o processo Dias Nabais... Parece que o processo esteve nas suas mãos. Queria perguntar-lhe se se lembra de ter visto um documento...
Sim, um documento em forma de folha dobrada em quatro dentro do bolso... sorria ele. Mas que não, não vira o documento. Não se lembrava de nada. Ela pareceu contrariada. Como se lhe viessem à memória recordações muito antigas, atirou-lhe:
- Ah! Espere... Ela estremeceu e ele, com ela, sentiu-se tremer sobre aquele corpo frágil. Descreveu vagamente o documento, como se lhe tivesse passado rapidamente sob os olhos. O rosto dela iluminou-se:
- Isso mesmo, isso mesmo!
Conclusão: ele vira mas não sabia o que lhe tinha acontecido depois. Não tinha nenhuma ideia de como desaparecera. E ela não podia apresentá-lo em tribunal.
- Sim, mas já é um começo. Vou estudar o assunto. Vou ver o que se pode fazer. Não se importa de se manter disponível para falar comigo?
Se se importava! Disponibilidade era tudo o que ele tinha. No dia seguinte não a viu no tribunal todo o dia. Devia estar a “estudar o assunto”. Ao fim da tarde, quase à hora da saída, viu-a finalmente chegar. Foi interceptada no corredor pelo juiz Reis, que a ocupou durante vários minutos. Resolveu sair um pouco antes da hora, como faziam os outros. Felizmente que o chefe não estava. Escusava de manchar a sua reputação impecável. Tinha que se apressar porque ela já tinha acabado a conversa com o juiz. Fez um percurso sinuoso para que ela não o encontrasse de frente mas que lhe permitisse vê-lo sair. Ela viria atrás dele. Apressou o passo na rua. Queria afastar-se rapidamente do tribunal. Pouco depois ouviu o martelar dos saltos dela. Corria atrás dele, quem diria! Sentiu-se glorioso, quando ela finalmente o alcançou e lhe pediu...
- Espere, espere...
Fez-se surpreendido, sorriu-lhe. Revelou-se-lhe em todo o seu encanto. Foi aí que ela primeiramente o viu, a ele como homem e não simples oficial de justiça. Ele amparou-a com o braço porque ela vinha ofegante e, enquanto aguardava que a respiração normalizasse, ela sentiu todo o calor da sua mão, uma mão forte e quente, de homem. Por momentos ficaram calados e ele acariciava-lhe o rosto com o olhar. Depois ela disse:
- Desculpe atrasá-lo. Estive a pensar se não poderíamos fazer uma busca na sua secretária. Os dois juntos talvez tivéssemos possibilidade de passar tudo a pente fino. Sabe que, com todos aqueles papéis e pastas, pode ter passado por ele sem dar por isso... Nunca lhe aconteceu?...
Os dois juntos. Foi aí que ele percebeu. Ela estava impressionada ou, pelo menos, atraída. Corava, parecia muito menos confiante do que lhe era habitual. Disse que sim. Que fariam isso, sem dúvida. E logo depois, disparou:
- Porque não vamos tomar uma bebida primeiro? Parece-me que ainda precisa de recuperar dessa corrida...
Fez o seu melhor sorriso, a que tentou juntar alguns sinais de preocupação que não chegassem ao paternalismo. As mulheres como ela não apreciam essa atitude. A leve hesitação que sentiu da parte dela fê-lo recear que tudo não passasse de uma ilusão sua. Na verdade, ela desprezava-o e ia rir-se-lhe na cara e ele morreria ali mesmo. Mas antes que a sua sensação de pânico se revelasse, ela respondeu:
- Claro, vamos... – a voz era suave, quase doce. Então, ele soube. Ela rendia-se e talvez ainda não tivesse sequer dado por isso. Encaminhou-a com o braço, oferecendo-lhe protecção por entre os transeuntes apressados do fim de tarde.
(Continua...)

Fotos: DaJe e Alexandre Toresan