terça-feira, 27 de novembro de 2007

O RATO. Parte 3.

Entraram num barzito onde ele costumava passar todos os dias. Nunca entrara. Para quê? Que faria sozinho num bar? Vistas de fora as cores quentes das luzes interiores pareciam-lhe acolhedoras como as chamas de uma lareira a que não tinha direito. Mas agora não entraria sozinho. Escolheu uma mesa do fundo, mandou pedir cocktails e puxou a conversa. Primeiro falou do tempo, evasivo, a maldizer a chuva, a rir-se dos que já não teriam um fim-de-semana estendidos ao sol, na areia da praia. Depois introduziu-a numa confusão conveniente. Se ela não teria o papel em casa, se teria visto bem, porque essas coisas às vezes acontecem, o que queremos muito estar mesmo debaixo do nariz e não vermos. Ela sorria. Que não, que tinha revirado tudo e ele concordara que tinha visto o papel no processo… Ah, pois, claro, parecia-lhe que sim, certeza, porém, era difícil… Agora era importante falarem de si, por isso conduziu a conversa para as carreiras, uma mulher como ela gostaria do tema. Como ele costumava ter tudo sob controlo, nunca perdera um documento, por isso o chefe se apoiava nele, era preciso estar de olho também no trabalho dos outros, hoje em dia, já se sabe, ninguém quer saber da causa pública, bem se via pelos colegas, era um desleixo, uma indiferença… mas o chefe bem sabia que podia contar com ele. Ela concordava, começou a falar, aos poucos os olhos iluminavam-se e ele percebeu que estava a conquistá-la. Era altura de ir chegando a outros pontos. As mulheres admiram homens com filosofia de vida. O trabalho. O trabalho sério e honesto é que era o caminho. Para ele nada tinha sido fácil, tinha lutado pelo seu lugar. E não era pouco, toda a gente sabe como são as coisas no país, os lugares conseguem-se com cunhas, não há verdadeiro reconhecimento do mérito. Outros tinham a vida facilitada, o Rodrigues, por exemplo, toda a gente no tribunal sabia que ele tinha um tio no Ministério, por isso é que o chefe o promovera e não se permitia comentar-lhe as saídas antes da hora. Enfim, não era fácil singrar num país assim mas quando se tem princípios… Ela concordava com a cabeça que era isso mesmo, na advocacia também só singravam os grandes escritórios, onde os advogados de prestígio metiam os filhos e os sobrinhos. Por isso é que ela fazia tanto empenho na defesa do figurão do papel desaparecido, que estava inocente e a ser tramado por uma quantidade de corruptos, era uma questão de princípio…
Irmanados pelo amor à causa pública, sorriram em uníssono, próximos da felicidade. E o que fazia ela nos tempos livres? Mal fez a pergunta arrependeu-se. Fora demasiado directo, demasiado óbvio e ela arrepiaria caminho. Ah, parece que não!... Que susto! A resposta vinha tranquila e banal, cinema, leituras em casa ou na praia, o costume. Ia ao ginásio, só às vezes. Ainda bem, que ele não tinha paciência para grandes correrias à revelia de tapetes electrónicos… Se ela gostava de um estilo de vida natural ele tinha alternativas. Contou-lhe que gostava de visitar o jardim zoológico. Fora barra em Ciências Naturais, no liceu. Sabia as espécies e as classes todas de cor e em latim! Nunca mais se esquecera. Desde os tempos em que o pai era director do liceu que lhe ficara aquilo, fora uma forma de impressionar o pai, mas claro que isso não lhe ia dizer, contara uma vez à Luísa e ela rira-se dele. E lá no fundo continuava a guardar a mágoa da época em que o pai não se calava com os louvores à Irene, a filha do senhorio do prédio em que moravam, que era aluna do pai a Português. Como ela cantava os verbos todos, nunca se enganava nos tempos compostos e no 5º ano sabia o canto I dos Lusíadas de cor, e papagueava aféreses e apócopes e toda aquela tralha linguística que não servia para nada. No dia em que a Irene o apanhara a olhar-lhe para as pernas no balneário da ginástica e lhe pregara um estalo ele jurara-lhe ódio mortal e eterno. Passara uma semana a decorar o latinório da zoologia, fizera uma corte discreta mas sólida à professora de Ciências porque sabia que nelas a Irene era mais fraca, tinha aversão a bichos. Fizera um trabalho de casa magnífico, com colagens dos animais, mas a glória tinha sido no dia da apresentação na aula, depois do trabalho fraquito da Irene, quando ele tinha ido ao quadro e explicado aquilo tudo à turma, com os nomes muito bem ditos em latim. A professora ficara encantada e fizera-lhe um elogio rasgado ao pai… Bem, não podia pôr-se agora com aquelas recordações, aproveitou para a convidar para ir ao jardim zoológico no dia seguinte. A alma estalou-lhe de alegria quando a viu aceitar sem hesitações. Não falou mais do documento, parecia ter esquecido o assunto e estar mais preocupada com a melhor hora para se encontrarem.
O arroz estava pronto, só tinha que o deixar repousar para secar um pouco. Verificou mais uma vez a temperatura do vinho e pensou que não seria nada bom se o Jeremias resolvesse aparecer a meio do jantar. Algumas mulheres têm medo de ratos. Podia estragar tudo. Mais tarde, claro, haveria de lhe falar do Jeremias. Orgulhava-se dele e ela havia de perceber isso. Mas por enquanto recomendava-se prudência. Primeiro queria vê-la nua à sua frente, entregue aos seus beijos, disposta a tudo por ele. Parou, extasiado. Ela, nas suas mãos. Despi-la lentamente, abrir-lhe o desejo suavemente, entrar na doçura quente das suas curvas. Um barulhinho familiar acordou-o a tempo. Aí estava o Jeremias a olhá-lo com os seus olhinhos espertos e o focinho a aspirar vestígios de queijo. Não podia definitivamente arriscar-se. Cortou vários pedaços de queijo que empurrou para dentro do buraco na parede e, depois de ver o rato entrar atrás deles, puxou o aparador de modo a tapar o buraco. Talvez a Laura não achasse aquele mus musculos tão interessante como os bichos que ele lhe mostrara no zoo. Como ela rira nesse dia! Estava tão feliz! Deram as mãos pela primeira vez. Ela nem se apercebera quando ele lhe pôs o braço no ombro e não o afastara. Ria-se com as imitações dele: Sra. Peres, tenho o prazer de lhe apresentar o Sr. Panthera Tigris!
Tinham almoçado no restaurante do jardim. A vista era bonita. Ela falara-lhe do pai. Parecia gostar muito dele. Era um antropólogo, professor universitário já reformado, com uma vida cheia de aventuras. Fizera investigação entre os índios da Amazónia, vivera meses com eles completamente isolado do mundo, conhecia profundamente a sua cultura. Os seus olhos brilhavam ao falar do pai, o que o desconcertou um pouco. As mulheres que admiram o pai como herói têm dificuldade em render-se a outro homem. Uma pontinha de ciúme. Era difícil competir com um pai tão fascinante.
Resolveu falar do seu pai. Contou como o pai fora perseguido pela pide e estivera preso por proteger estudantes contrários ao regime e se juntar com intelectuais rebeldes em tertúlias clandestinas. Na verdade, não fora preso, mas podia bem ter sido. A mãe, pelo menos, bem o avisava e dissera-lhe várias vezes que se deixasse de conversas perigosas. Mas o pai era esperto. Realmente, mantinha conversas comprometedoras com o Dr.Almeida Costa da livraria, e com outros dois ou três professores do liceu que estavam muito ligados ao Partido Comunista. Eles é que lhe tinham pedido abrigo num barracão de jardinagem do liceu para o Afonso Freitas, aquele do 7º ano que se tinha metido em confusões com uns panfletos e era filho de um farmacêutico comunista. O pai ficara aflito, não queria perder a admiração dos colegas a quem lia às vezes poemas seus mas também não queria problemas com a polícia nem com a mãe, que não era para brincadeiras. Pagara as viagens ao rapaz para ele fugir para França e o caso ficara assim encerrado. Pura sorte, porque a polícia podia ter sabido do assunto (eles não sabiam sempre tudo?) e o pai podia ter ido parar a Caxias.
O pai contara-lhe a história já depois do 25 de Abril, quando ser contra o regime se tornou uma forma de heroísmo que todos desejavam a ilustrar-lhes a linhagem. Explicara-lhe então que também tivera a sua parte nessa luta desinteressada pela liberdade e que a História é injusta quando só recorda os mártires porque é mais difícil resistir levando uma vida cívica activa e norteada por princípios do que entregar-se à polícia. Os fiéis veneram os que morreram entre as garras dos leões e mancharam as arenas de sangue e esquecem os que ficaram em casa a rezar por eles. Havia uma heroicidade diferente no seu pai, uma luta pela liberdade menos vistosa, é certo, mas nem por isso menos heróica. É claro que a Laura não perceberia isso porque não tinha conhecido o seu pai, por isso o melhor era falar-lhe de uma heroicidade mais fácil de perceber. E acertou em cheio. Ela ficou interessada, fez perguntas, como tinha sido a sua infância. Hesitou. Não sabia bem se lhe contaria aquela sensação de permanente e vago arrependimento, que o acompanhava desde pequeno. Seria bom obter dela alguma compaixão, um afago no rosto, talvez, as mulheres gostam disso, é o instinto maternal. Mas talvez fosse demasiado cedo, afinal tinha apostado tudo em fazê-la entender que era ele o homem que poderia protegê-la do mundo. A infância fora, portanto, feliz, entre um pai modelo de vida cívica e uma mãe tradicional que devotara a vida a educá-lo e a apoiar o marido. E era verdade, esses eram os factos. Não tinha razões concretas para justificar nenhuma infelicidade, nunca lhe faltara nada.
(Continua...)
Fotos: Fernando Figueiredo e Francisco Garrett