quarta-feira, 28 de novembro de 2007

O RATO. Última Parte.

Resolvera ceder no fim-de-semana seguinte a uma ida à praia. Estava o bom tempo de um Abril generoso e ela estivera ocupada toda a semana em compromissos profissionais. Nas raras vezes em que se haviam avistado no tribunal só a linguagem dos olhos os ligara. Sentira-se no topo da escada da Sala Magna elevado por fios invisíveis de comoção. Apetecera-lhe contar aos colegas, aquela mulher lindíssima, Laura Peres, que ali vai, é minha. O Rodrigues teria corado de vergonha pelo seu carro desportivo, pelos risinhos da Celeste. Mas não podia. O silêncio era a chave do sucesso, mesmo que fosse capaz de prever que com o tempo aquele segredo tornar-se-ia insuportável. Não poderia continuar a olhá-la do patamar de baixo da escada eternamente. Os sentimentos confundiam-no. Precisava de estar a sós com ela, voltar a sentir-se reflectido na íris azulada dos seus olhos. Por isso resolvera ceder quando lhe ligara a convidá-la para sair no sábado e ela propusera a praia. Era preciso alimentar a chama, vencer a distância da semana. Escolheram a Roca Velha, uma pequena enseada de areia quase deserta no fundo de uma escarpa que se descia de mão dada, para a proteger das quedas. Fora uma boa escolha. Não esqueceria nunca o momento em que ela poisara a mochila e correra para a borda de água, a tomar-lhe a temperatura. Ele olhava-a cá de cima. O gesto prolongado com que ela desabotoara o vestido e na contraluz de um sol magnífico e escultor se lhe revelara, nascida de um bikini vermelho como uma concha rosada, provocara-lhe um choque. Estremeceu. Tinha de ter aquela mulher. O desejo de lhe tocar, de ser ele a despi-la, e a recomendação de prudência secavam-lhe a boca, humedeciam-lhe as mãos. Lutou com a emoção correndo para a água e mergulhando.

O dia decorreu com a liquidez de uma tela de Hollywood. Comeram uvas à sombra dos rochedos, perseguiram-se dentro de água, deitaram-se ao sol de mãos dadas, falando de quase nada. Não ousavam falar do futuro mas pareciam ter mergulhado no tranquilo entendimento de quem tinha um longo passado em comum. Ele notou, sorrindo de felicidade, que ela nunca mais mencionara o documento, não voltara a pedir-lhe que o procurassem, parecia ter esquecido completamente o assunto. Quase não era, ali recortada pelo sol e pela moldura dourada de areia, a mesma Laura Peres entronizada em finos saltos altos profissionais. Era verdade. Uma mulher apaixonada rende-se ao braço que a ampara. Com o tempo e com a consumação da paixão, ele acabaria por ser o seu esteio. Claro, nunca poderia pedir-lhe que deixasse de trabalhar porque o seu ordenado de oficial de justiça não seria suficiente mas, quando tivessem filhos e ela fosse solicitada pelas atenções da maternidade, fixariam um limite com o qual poderiam esperar viver aceitavelmente sem ter de a ver subir a toda a hora a escadaria do tribunal. Lá em cima tinha-a menos e regressava invariavelmente ao primeiro dia em que ficara cá em baixo a achá-la inacessível.
Chegava o tempo. As semanas tinham passado numa felicidade calma com que ele vestia a impaciência do seu desejo. Quando sugeriu um jantar em sua casa ela nem se sobressaltou. Aceitou imediatamente como o passo naturalmente à frente dos que tinham dado. E agora ali estava a tocar à campainha e ele a recebê-la de braços abertos, uma taça de vinho na mão, a música calma, o aroma adocicado das velas, o jantar quente na mesa. Tudo perfeito. Ela sorria. Olhou em volta, parecia acolher com agrado os preparativos. Desculpou-se pelo atraso.

- Venho do médico – disse – não, nada de mais – apressou-se a explicar perante o seu ar preocupado – é só um princípio de gripe. Poisou em cima da mesa um saco de supermercado e tirou de lá umas latas de coca-cola. – Não posso beber vinho, por causa dos medicamentos, trouxe isto.

Era uma pena, o vinho com que tivera tanto cuidado. Mas o importante era que ela se sentisse bem. E afinal a paixão era tão evidente que poderiam bem dispensar o atordoamento do álcool. Senti-la entregar-se com completa lucidez poderia mesmo ser mais inebriante do que qualquer outra coisa. E ela estava tão feliz!... Quis substituir as taças por copos, fez questão de ir ela mesma à cozinha e trouxe de lá a coca-cola já servida, depois de o ter empurrado para a mesa, onde a esperou, prevendo outros jantares, ela cuidando para que tudo estivesse ao gosto dele. E ela despida pela penumbra das portadas do quarto entreabertas e ela acordando tranquila em manhãs sucessivas.

Conversaram como sempre, disto e daquilo. Contou-lhe como encontrara aquela casa, como a decorara sozinho, falou da vida dos vizinhos, das boas relações com a porteira, enfim coisas do seu mundo cujo limiar ela acabara de atravessar, coisas entrecortadas de risadas, de sorrisos, de mãos dadas sobre a mesa. Estava tudo perfeito. Sentia-se realmente inebriado, como se o vinho tivesse sido bebido. Fraquejavam-lhe as pernas, antevia a madrugada e sentia ir-se-lhe dos músculos uma muito antiga pressão, aquela vaga sensação de arrependimento que o acompanhava desde criança, aquele insidioso nó de garganta que lhe ficara desde o divórcio da Luísa. Tudo se lhe soltava num conforto novo, como se o corpo não lhe pesasse, como se o ar não precisasse de ser respirado para sobreviver.

Chegara a hora da recompensa. Ela merecia e ele queria definitivamente selar uma etapa e avançar para uma vida séria. Acabadas as sobremesas, levantou-se e procurou numa gaveta uma folha de papel azul. O documento do processo. Tinha uma certa pena de se desfazer dele. Afinal fora a sua carta secreta no jogo da felicidade, evocá-lo guardado numa gaveta da sala dava-lhe uma sensação de segurança semelhante à certeza da presença do Jeremias à sua espera todos as noites, a certeza das coisas bem feitas, a segurança das conquistas por mérito próprio. E ela nunca mais tocara no assunto, seria uma surpresa, embora suspeitasse de que a recuperação do documento tinha deixado de ser uma prioridade já há algumas semanas. Nem se lembrara de lhe perguntar como ia o andamento do processo. Talvez ela até tivesse encontrado uma solução alternativa e já não precisasse tanto do papel. Laura Peres, a advogada diligente, já devia ter resolvido o assunto. Assim o seu gesto seria mais um acto de amor, como a oferta de um ramo de rosas, inúteis mas simbólicas.

Quando ele regressou ao sofá com a folha na mão, ela não parecia compreender. Ele sentou-se ao lado dela, pousou a folha na mesinha e pegou-lhe na mão. Aproximou-se para a beijar. Ela mostrou um sorriso disponível mas então reparou no papel e suspendeu o beijo.

- O que é isso? – interrogou, com curiosidade. Ele pegou na folha:

- Isto… Estive ontem a fazer umas arrumações lá no escritório e vê bem o que eu encontrei… o documento do caso Dias Nabais que tinha desaparecido…

- A sério?... – A indiferença dela encheu-lhe a alma. Pôs-lhe o papel na mão. Ela varreu-o com os olhos e acenou com a cabeça, confirmando a identificação do documento.

Agora levantar-se-ia, abraçá-la-ia por trás, cingindo-lhe a cintura fina com as mãos, desapertar-lhe-ia a camisa. Pousou o copo de coca-cola que ela tinha enchido pela terceira vez e soergueu-se. Sentia-se esvaído de todas as forças, o coração batia-lhe aceleradamente, uma paixão afogueada impunha-lhe a necessidade de a beijar, de se perder nos recantos mais ignorados do corpo dela. Encostada à mesa ela olhava-o sorrindo. Não conseguiu levantar-se. Ela sorria. Chamou-a para junto de si com a mão. Ela não veio. Mas sorria.

- O que se passa? – perguntou. Inquietou-se. Tinha a sensação de que algo estava errado mas não compreendia o quê.

Ela começou a levantar da mesa o prato, copo e talheres com que tinha comido. Ele insistiu em levantar-se mas não foi capaz. Começou a ficar alarmado. O que estava ela a fazer? Porque continuava a sorrir quando ele não conseguia mexer as pernas? nem os braços?

- Laura, vem cá! Passa-se qualquer coisa, acho que não me sinto bem.

Na cozinha, ouviu o barulho da água do lava-loiça, depois as portas dos armários a bater. Porque estava ela a lavar e arrumar a loiça em que tinha jantado? Porque não se preocupava com ele?

Quando ela voltou à sala ainda sorria e ele percebeu definitivamente que alguma coisa muito grave estava a acontecer. Sentiu-se alcançar pelo pânico. O instinto de fugir enlouquecia-lhe o coração e embatia nas suas pernas mortas, inertes, inúteis. Ela arrumou toda a sala, fez desaparecer as velas e a maior parte das latas de coca-cola num saco de plástico que colocou junto da porta. Calou a música e ligou a televisão. Tirou da mesa a toalha recolhendo as migalhas da sobremesa com cuidado. Procurou nas gavetas e encontrou um individual sobre o qual voltou a pôr o prato dele, espalhando em volta as migalhas recolhidas e duas latas de coca-cola vazias. Pegava em tudo protegendo a mão com um guardanapo de papel que depois guardou no bolso das calças.

Virava-se agora para ele, enfim. O mesmo sorriso parecia gravado para sempre nos lábios maduros que ele não chegara a colher.

- Então, estás confortável? – olhou-a horrorizado. Compreendia finalmente. – Queres que te conte uma história para adormeceres? Era uma vez um ratinho. Que vivia num buraquinho escuro da floresta. Como tinha muito medo de sair porque se achava muito fraco perante os predadores, resolveu enriquecer a sua dieta e começar a comer insectos para ficar mais forte e poder encarar a vida com outros olhos. Caçava-os numa armadilha onde deixava todas as noites um pedaço de fruta para os atrair. Ficava à espreita e, quando o insecto poisava as patas na fruta pegajosa, zás! comia-o de uma dentada, misturado com a fruta, doce e inebriante. Um dia o indiozinho Araré passeava na floresta e viu a fruta. Viu também o ratinho, embora ele vivesse a maior parte do tempo escondido, com medo dos animais grandes da floresta. Mas sempre se conseguia ver o focinhito à espreita, por entre os troncos que disfarçavam a entrada da toca e o indiozinho tinha um olhar certeiro e fino. Vá-se lá saber porquê o ratinho achou Araré apetitoso e como ele não tinha garras nem presas afiadas achou que poderia caçá-lo como aos insectos e fornecer-se de carne fresca e tenra para muitos invernos. Ficaria forte e grande como a onça e poderia finalmente sair para passear na floresta sem receio. Nessa noite carregou para a armadilha toda a quantidade de fruta que pôde e esperou. Estava ansioso por fincar os dentinhos afiados na carne tenra e morena de Araré. Pensava tanto nisso que não reparou na flecha que o indiozinho trazia e que disparou mal chegou, antes de pegar na fruta. Os índios da Amazónia envenenam as pontas das setas com a seiva de uma planta que paralisa o sistema nervoso periférico das vítimas. Assim, os animais permanecem vivos e conscientes por muito tempo mas não conseguem mover qualquer músculo e os índios apanham-nos sem dificuldade. Só várias horas mais tarde é que morrem, por asfixia, porque os músculos não se contraem e impedem os movimentos respiratórios. É claro que o ratinho não sabia nada disto nem conhecia o curare, por isso foi com grande pena que viu o indiozinho levar a fruta que ele carregara toda a noite antes de morrer sufocado. Todos os índios conhecem esta história que explica por que razão não se deve tocar em nenhum alimento que tenha sido contaminado por urina de rato. É que depois deste dia, os ratos passaram a expelir pela urina um veneno semelhante. Quando o meu pai esteve na Amazónia, os índios explicaram-lhe que devia ter muito cuidado com a urina dos ratos e mostraram-lhe como se extrai o veneno da planta que o produz. O meu pai trouxe algum, que mandou analisar e que ainda guarda em casa. Mostrou-me o frasco recomendando-me que tivesse muito cuidado com ele porque bastam algumas gotas para produzir efeito. Nunca me esqueci do aviso e sou sempre muito cautelosa com latas de bebida que estiveram muito tempo guardadas em armazém. Nos armazéns há muitos ratos e é preciso limpar muito bem as latas antes de as abrir.

Laura Peres levantou-se. O sorriso não se tinha alterado. Vestiu o casaco, pegou na folha azul do documento, guardou-a na mala e saiu devagar, fechando a porta silenciosamente e deixando-o só. Talvez tudo aquilo fosse apenas uma história para o atemorizar, para se vingar do incidente do documento. Sentia-se perfeitamente lúcido, só o corpo não respondia às suas ordens. Tinha de fazer um esforço para reagir, tentar levantar-se. Ela não o amava. Como uma seta, a evidência rasgava-lhe o coração. Ele tinha-lhe dado tudo de si, o melhor do que era e ela não o amava. Tinha de chegar ao telefone e pedir ajuda.

Ouviu um troc-troc conhecido. No canto da parede que o aparador deixara descoberto depois de ser arrastado, vislumbrou então um novo buraco no rodapé. Um narizito conhecido. O Jeremias encontrara uma alternativa para o buraco tapado. A casa era de construção antiga, devia ter túneis escavados por toda a parede, bastara-lhe roer uma nova saída. Aí vinha ele na sua direcção. Parou à sua frente esperando pelo pedaço de queijo que a sua mão não lhe estendia. Depois avançou, subiu heroicamente pela sua perna e, como não encontrasse oposição, trepou-lhe pelo peito até ao ombro. Não sentia nada mas percebeu que o Jeremias alcançara a sua orelha e começara a roê-la devagarinho, com pequenas dentadinhas certeiras. Como num sonho, viu-o instalar-se confortavelmente na sua cabeça e cofiar os bigodes, acariciando o rosto de rato com um gesto muito seu.