sábado, 30 de junho de 2007

Coimbra: Quinta das Lágrimas


Lágrimas caem, coração sobe,
Pedro tarda, olhos demoram.
Além das fontes, penedos dormem,
saudade canta horas maiores.
Dores esvoaçam sobre os cabelos
de tranças loiras, desmaiadas.

- Mãe, porque choras?
- Pedro tarda, o coração dói.

- Mãe, porque sonhas?
- As fontes cantam, as horas morrem.

- Mãe, tu não morres.
- Da água bebo, a água me mata.
Pedro lá vem, oiço o galope.
Que traz na mão ensanguentada?

- Senhora minha, lágrimas não.
Tu és rainha e eu sou teu.
Aqui te trago um coração.
Guarda-o no peito, que ainda sangra.
Roubei-o além na estrada escura
Que daqui não vês.
Bebe da água, para sempre pura,
para sempre minha, para sempre Inês.

terça-feira, 26 de junho de 2007

A caminho do futuro


Todos os dias abria os jornais para ler o horóscopo. Conhecia bem os astrólogos residentes de cada um e comparava as respectivas profecias e recomendações. Às vezes coincidiam, às vezes contornavam-se delicadamente, oferecendo assim, no conjunto, um panorama muito mais vasto do futuro. Por vezes colidiam descaradamente, sem o menor respeito pela coerência do universo. Nessa altura exclamava: - Olha, o Professor hoje está mal disposto! Logo ele, que costuma ser tão auspicioso! - E fazia fé nos outros, nos que tinham acordado felizes, porque – acreditava – a boa-disposição é fundamental para o futuro correr bem.
Depois do pequeno-almoço, repostos os jornais na barra suspensa do café, partia com a alegria doseada, a gastar prudente e paulatinamente ao longo do dia. O trabalho na agência de publicidade era agradável. Construía sonhos e planos para a vida dos outros, imaginava-os felizes, conduzia-os por metáforas coloridas. Quando tinha de declarar a sua profissão em encontros sociais nunca dizia «Publicitária», dizia sempre «Criativa», consciente de que ficava sob o abrigo dos neologismos tecnocráticos do capitalismo. Achava-lhes graça, aos neologismos, e à arte de os inventar. Apressava-se a lembrar, quando via alguns narizes levemente torcidos de superioridade filosófica: «Como o Pessoa…»; e pensava «Comunistas!...».
Ultimamente andava mais feliz. Apaixonara-se. Primeiro não queria acreditar, mas depois, vendo a persistência do Afonso, os telefonemas diários, os olhares insistentes, rendera-se à evidência: estava apaixonada. E entregara-se à dança de encontros diários e aos fumos inebriantes da paixão. Combinavam mesmo fazer, na primeira série de feriados que permitissem uma ponte, a viagem que há muito desejava. Cuba ou Brasil ou República Dominicana. Via-se a tomar uma piña colada na beira de uma piscina azul sob um céu azul e antecipava a brisa quente da tarde a remexer-lhe os cabelos enfeitados de flores por entre os beijos ardentes do Afonso. Não era tão musculado como o modelo que fizera aquele anúncio da agência de viagens mas tinha um sorriso mais bonito.
Agora que tinha um namorado podia fazer planos, valia a pena, investia na relação sem correr demasiados riscos. Nada de casar, como as amigas. Não lhe apetecia entrar já na roda-viva de fraldas e contas comuns. Abrira generosamente espaço para uma muda de roupa dele no seu roupeiro mas mais do que isso tinha tempo, sem pressas…
Estavam quase a dar-lhe, na agência, um grande projecto. Mostrara as competência necessárias e conseguira-o sem hostilidades com os colegas. Tinha a arte de se fazer admirar e o seu perfil era reconhecido. O director sorria-lhe todas as manhãs e várias vezes o surpreendera a lançar-lhe olhares laterais quando tinham de tomar decisões importantes. A adesão dela contava, se franzia o sobrolho ele anunciava prudência e – ela sabia - interiormente agradecia-lhe por não se evidenciar.
Estacionou o carro na garagem do edifício e subiu no elevador. O grande projecto que se anunciara deveria já ter chegado à agência. Reviu mentalmente os dados do negócio, passara a noite a pesquisar na net a empresa que propunha a campanha. Sorriu no preciso momento em que chegava ao seu andar. A confiança é meio caminho andado, dizia a si própria, e procurou na pasta o dossier que reunira sobre a empresa. Apercebeu-se de que se esquecera dele no carro e soltou uma exclamação de contrariedade. Estava tão distraída com as contas de cabeça ! Deu meia volta e entrou no elevador ao lado daquele de onde tinha saído. Estava no andar e de porta aberta, mesmo pronto para a levar mais rapidamente de regresso à garagem. Ainda ouviu exclamações no momento em que carregou no botão. A descida rápida do elevador não lhe permitiu perceber o que diziam os gritos. Num segundo tudo se precipitou no seu cérebro. Interrogou-se sobre a porta que não tinha fechado como devia, viu o papel colado no vidro «Fora de Serviço – PERIGO !», sentiu a velocidade vertiginosa com que o elevador descia e ouviu o assustador barulho de cabos e roldanas descontroladas. No último segundo, os seus lemas predilectos giraram em frente dos seus olhos em colorido slogan: não desprezar nenhum pormenor e saber esperar…
Foto: L Du Lac

sexta-feira, 22 de junho de 2007

MARIANA

- Aquela casa, avó, lá em cima na serra?
- Casa do Diabo, Mariana, não vás lá.
- Do diabo, avó, qual diabo?
- Menina, o iluminado, que trouxe luz às trevas, caluda, caluda, Mariana, não é casa, é covil.

- Aquela casa, tia Násia, lá em cima no monte?
- Casa maldita, Mariana, não olhes para lá.
- Maldita, tia Násia, maldita por quem?
- Menina, castigada por Deus, ferida pelos anjos, silêncio, silêncio, Mariana, não é casa, é inferno.

- Mãe, que casa é aquela, além na colina?
- Mariana, és tão menina, filha, que te interessa aquela casa?
- Quero saber, mãe, fala-me do diabo e de deus.
- Era a casa de Lilith, minha filha.
- Quem é ela?
- Está longe, recolheu ao mar, ao seu leito de águas. Deus deu-lhe aquela casa na terra para que Lilith se arrependesse.
- Se arrependesse de quê, mãe?
- De ter colhido o fruto, de ter olhado Deus na sua face, de lhe ter pronunciado o nome.
- E depois, mãe?
- Deus é misericordioso, Deus é bom, deu-lhe uma casa na serra para que Lilith tivesse filhos e renunciasse aos frutos. Mas Lilith chamou o Diabo e dele concebeu uma filha e um filho e eles viviam nas trevas, nasceram sem olhos por castigo de Deus. Então o Diabo perdeu a luz porque os seus filhos foram cegos. Mas Lilith tinha o saber, Mariana, e foi à árvore e trouxe um fruto e deu-o a comer aos filhos. E viram a luz e maldisseram Deus e o Diabo iluminou a casa e ela brilhou na colina.
- E deus, mãe?
- Deus é dono da última palavra, filha. Deu-lhes o último castigo: fez da luz que havia na casa do monte uma luz tão forte que se tornou fogo e consumiu nas chamas a casa e os filhos de Lilith. Lilith fugiu para o mar, lá é senhora e mãe de filhos que não podem arder.
- E a árvore, mãe?
- Ainda lá está, Mariana, nunca mais ninguém a viu porque ninguém sobe a colina, mas ainda lá está. Não vás lá, filha, não olhes, que o olhar te cega e a subida te queima.
- Que pena, minha mãe, e a que sabe o fruto?
- Não sei, ninguém sabe, não perguntes que é pecado e o teu nome é Mariana!


- Aquela casa, tia Násia, lá em cima no monte, aquela casa, avó, lá em cima na serra, fui lá ontem, mãe, à casa de Lilith.
- Que dizes, menina, que mentiras são essas?
- É verdade, estive lá, vi a árvore, vi o fruto e colhi-o.
- Menina, enlouqueceste?
- Não, provei o fruto, avó, é tão doce, tia Násia, e mata a sede, minha mãe!
- Cala-te, Mariana, que é desgraça o que dizes!
- Vi a face de deus, mãe, e deus não tem face e só ela o soube e o diabo, tia Násia, o diabo é a face de deus.
- Calem essa menina, fechem-na no quarto, que não está boa, tirem-lhe a língua, tirem-lhe os olhos, queimem-na, que arda em chamas Mariana!
- Mariana? O meu nome não é Mariana.

Foto: Lara Pires

quarta-feira, 20 de junho de 2007

O céu que cai

No deserto que fica mais distante das estradas habituais, receando os salteadores que se acolhem nas cavernas à beira dos oásis, entrei nas montanhas interiores do Atlas. Procurava um silêncio total, revelador de sabedorias.
Visitei solitários que tinham começado primeiro do que eu. Conversámos ao cair da tarde sobre a verdade e o bem, sobre a justiça e a beleza, perguntando uns aos outros pelo lugar onde se escondem, nesse tom grave e sério em que se exprimem os sábios e os filósofos. Recapitulámos lições, trouxemos à memória grandes ditos, reflexões maduras e profundas que os livros explicam em palavras continuamente reinventadas. Prossegui no deserto.
Vinte dias depois, encontrei uma inesperada flor. Com certeza por acaso ali nascera, pequena e solitária. Sentei-me perto dela e escutei.
Com a voz muito fina e aguda que se pode esperar de uma flor respondeu às minhas perguntas: desde que nascera que contemplava o céu. Achara-o verdadeiro, bom, justo e belo. Perdera-se de admiração, não dera pelo tempo passar.
Um dia um pedacinho de céu caiu. Mesmo ali. Perto do seu caule. A flor olhou e viu que o céu era só transparência, nada mais do que isso. Parecia ser o que ela quisesse, conforme o que visse do outro lado da trans­parência. O que era verdadeiro, bom, justo e belo não era o céu, era o desejo que a flor tinha de verdade, bondade, justiça e beleza. Cresceram-lhe folhas, encheu-se de sementes. Ia agora entrar no tempo em que se abriria a deitá-las por terra, antes de murchar. Não se sentia triste por isso. Sabia bem que em todas as coisas há um pouco da transparência do céu e que o problema de procu­rar não é afinal senão o problema de atribuir.

Fotos: António Lança e Maria Isabel Batista

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces, estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom que eu os ouvisse quando me dizem: "vem por aqui!". Eu olho-os com olhos lassos, (há, nos olhos meus, ironias e cansaços) e cruzo os braços, e nunca vou por ali...
A minha glória é esta: Criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. Que eu vivo com o mesmo sem-vontade com que rasguei o ventre à minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos, como farrapos, arrastar os pés sangrentos, a ir por aí...
Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens, e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas e coragem para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, e vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas, tendes jardins, tendes canteiros, tendes pátria, tendes tectos, e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; mas eu, que nunca principio nem acabo, nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

Texto: José Régio
Foto: Paulo Madeira

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Caminhos do Sul


Em longas vias de destino desconhecido,
atiramo-nos ao futuro como a um ponto de fuga inevitável.
Ao Sul, os caminhos levam ao mar.




Os olhos espreitam à beira de todas as possibilidades.
Vontades e desejos quase eternos,
de uma eternidade móvel e rápida
como deve ela ser em cada momento
imprimem-se firmes e mudas.





O regresso será doce.
As portas abrir-se-ão quando chegarmos
das epopeias e das marés menos azuis
em busca das pedras desenhadas com o dedo
antes de partidas aventureiras.









quarta-feira, 6 de junho de 2007

Teoria da Relatividade




Toda a vigorosa e pujante importância


deve ser vista ao longe.


A distância separa mas


aproxima os olhos do todo


e restitui-lhe formas perdidas


nas hipérboles hermenêuticas.








domingo, 3 de junho de 2007

Homo Viator



Todas as viagens partem de um ponto na escuridão,
quando se debruçam sobre um cais anoitecido.
As águas congeladas escondem quilhas dos barcos
que rasgam a lama de rumos abandonados.
São ficções, os viajantes.
Contam histórias
com os olhos postos na réplica do sol
que se alcança ao longe, em breve madrugada.
Dormem sobre as brisas.
Erguem-se cedo.
Lavam as mãos na maré bebida em concha.
Partem.