quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Condição amorosa


O amor, para ser amor, é incondicional. Dizem-me. Não acredito.

Mas se o digo, dizem-me que o digo porque nunca amei a sério. Lá está: para ser amor... tem de ser, senão não é amor.
Pois, mas quem o diz fala do amor dos outros e não se pode falar do amor dos outros, porque o amor não é uma célula no microscópio, que se possa observar à distância, vendo os outros padecê-lo, e nós, objectivos, a injectar-lhe reagentes cá de longe. O amor, para se falar dele, tem de ser daquele que se sente por dentro.

O amor – dizem-me também – não é paixão, nem sexo, nem nenhuma dessas afecções dos sentidos com reacções químicas e feromonas e alterações do ritmo cardíaco.
O amor – insistem em dizer – é outra coisa, que vem depois, quando as coisas correm bem, e que pode nascer de onde antes não o havia e que se rega, como uma flor. Disso a ciência não consegue dizer coisa que se aproveite, embora tentem uns senhores que se apresentam como psicólogos – dos quais desconfio muito. Mas esses, para manterem o crédito e poderem continuar a dar-se com a gente “séria” da ciência, preferem não falar de amor. Falam de afectos, que têm um ar mais rigoroso e distante, apesar de o seu ascendente, o affectus latino, significar estado de alma, disposição de espírito, sentimento, paixão ou vontade, tudo coisas vagas e objectivamente inapreensíveis.
Voltamos, portanto, ao amor. E de amor mesmo, com a palavra e tudo, só falam os poetas e os romancistas. E os heróis do cimena e do palco. Tudo ficção, tudo mentira. Não sei como fazem os actores para tão facilmente dizerem “Amo-te”, porque é uma palavra que ninguém diz facilmente, olhos nos olhos com alguém e sem se rir. Dizemos “Gosto de ti”. Alguns miúdos dizem “Curto-te bué”. Tudo eufemismos para fugir à palavra, pesada, que temos de dizer arredondando os lábios como se chupássemos um refresco por uma palhinha. Deve ser por isso que não a dizemos, para não parecermos ridículos. Não parece coisa de gente crescida.


Mas quando se trata de falar do amor generalizando, é fácil. Temos muitas frases prontas: “o amor não escolhe idades”, “o amor é cego”, “não há amor como o primeiro”, “quem ama perdoa”, “quem o feio ama bonito lhe parece”. Ah! E “o amor é incondicional”!
Também temos uma moral do amor. Dizem-me que “o amor é para toda a vida”. Mas também me dizem que devemos desamar quem não nos retribui o amor. Por aqui já se vê que o amor também está sujeito a ambiguidades éticas e que, se calhar, quem tinha razão era o Luís, que dizia que o amor é paradoxal (lembram-se?... o contentamento descontente, ferida que dói e não se sente e por aí fora...).
Toda uma ciência sobre o amor, afinal. Guardada no bolso, embalada a vácuo, pronta a usar como um lenço de papel perfumado com alfazema, em qualquer ocasião. Basta que o amor apareça. Sem condições. Amamos um mentiroso. Para toda a vida ou apenas se ele nos retibuir o amor?

sábado, 14 de novembro de 2009

Teias da memória

Depois de um longa tarde de espanador e esfregona epicamente em punho, sentei-me no meu sofá, confortavelmente, e puxei para mim o último romance barato publicado pela Sábado: Susan Sontag, O Amante do Vulcão.
Belo fim de tarde, sem ponta de pó à minha volta. Ah! que merecido descanso! Relanceei os olhos pelos cantos do rodapé e pelas sancas do tecto, satisfeita.

Mas... o que seria aquilo, ali no esconso vértice da parede mesmo à minha frente, junto à janela? Uma teia de aranha?! Como é possível, depois de tanta batalha?

E eis que me embala a voz da minha avó, por entre as chamas da lareira.


Era uma vez uma mulher que tinha duas filhas, e criou-as no asseio e na poupança para que não lhes faltassem bons partidos nem boas casas.
Quando elas casaram, a mãe disse-lhes:
– Daqui a um ano vou visitar-vos e quero ver todas as varreduras do chão e todas as lavaduras da loiça de um ano inteiro!
As moças lá foram, cada uma para o seu destino. Ao fim de um ano, a mãe foi visitar a primeira filha. Encontrou-a com o seu marido e uma criança ao peito.
– Onde estão as varreduras do chão e as lavaduras da loiça? – perguntou.
– Venha, minha mãe!
E mostrou-lhe um belo par de galinhas, que tinha alimentado com as migalhas que tinham caído no chão, e um porco engordado com os restos deixados na loiça.
– Muito bem, minha filha! – disse a mãe – vejo que és uma rapariga esperta e trabalhadora!
A seguir foi visitar a outra filha. Bateu à porta chamando por ela.
– Minha mãe? – gritou a filha lá de dentro – venha de pedrinha em pedrinha, não se atasque!
A casa estava submersa em lixo e a filha sentada num canto a chorar sozinha porque o marido a tinha abandonado. Quando a mãe entrou, disse-lhe ela:
– Vê, minha mãe, como fiz tudo como me disse?...


Os contos populares são umas coisas perversas e cruéis. Porque contavam estas coisas às crianças? Abanei a cabeça suspirando, instalei-me melhor no sofá e abri o livro.

Espera lá ... para que poderá servir uma teia de aranha?