terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A Partilha


Desde que nos tornámos nautas do ciberespaço e que decidimos comunicar-nos com o mundo perfilhando um username com o qual podemos ser chamados por correio electrónico que nos habituámos a odiar o spam. Felizmente que a maior parte dos servidores já faz o favor de no-lo filtrar, tirando-o da nossa vista e poupando-nos algumas irritações.

Mas, pela parte que me toca, acho que o sistema está longe de ser perfeito porque ainda não consegue poupar-nos ao spam dos estados de alma dos amigos. Todos os dias, quando abro o correio, perco algum tempo a apagar sem ler mensagens reencaminhadas por eles.


A R., amiga de longa data, é uma adepta dos jornais on line e deve passar algumas horas por dia a consultá-los. Do que por lá encontra, envia-me todas as notícias sobre novas descobertas na área da saúde dos pequenos problemas. Se eu me desse ao trabalho de as ler, teria ficado informada, nos últimos meses, sobre técnicas inovadoras para desencravar unhas com laser, sobre o modo mais eficaz de tratar verrugas substituindo pomadas pelo muito mais barato WCPato, e sobre o nome da proteína cuja falta nos faz não gostar de hortaliças cor-de-laranja.

Mas aqui eu tive alguma culpa, confesso. Há um ano atrás, a R. andava preocupada com a fome no Terceiro Mundo. Farta de ser confrontada com fotografias de crianças africanas de barriga inchada e olhos esbugalhados a fitar-me cada vez que abria o correio, sugeri-lhe delicadamente que libertasse o espírito dos males da humanidade que não está na sua mão curar e que se preocupasse mais com as soluções simples do dia a dia (a R. chega atrasada a todo o lado, engana-se na estação de metro onde deve sair e não há semana em que não perca alguma coisa importante, como por exemplo as chaves de casa).

Depois temos a M., que viveu gloriosos momentos épicos empunhando cartazes nas recentes manifestações contra Maria de Lourdes Rodrigues e que reza o “Perdoa-me, Pai, porque pequei” sempre que se lembra de que um dia votou Sócrates. Já me reencaminhou 123 mensagens com caricaturas da Senhora (numa das quais fazia de bobo da corte socrática), mais 98 mensagens com anetodas que sugerem que Sócrates mais não é do que o nosso Bush. Já tentei explicar-lhe que as anedotas são pueris e que não me fazem rir mas não adiantou. Cada vez que clica no Send para reencaminhar mais uma, eriçam-se-lhe os pêlos dos braços de puro gozo.

Por fim, temos o F.. Está em crise conjugal, a mulher queixa-se de que ele não lhe deu o devido valor, nem apoio, nem companhia, nem prazer, nem nada e pediu o divórcio. Ofereci-lhe, é claro, o meu ombro amigo para desabafar as mágoas. Mas como os homens não gostam de que os vejamos em momentos de fragilidade e culpa assumidas, opta antes por enviar-me todos os dias daquelas apresentações em powerpoint de auto-ajuda: música de flauta em fundo, sequências de campos de flores ou rios correndos por entre montanhas e texto brasileiro cheio de erros de sintaxe dizendo que todos os dias devemos declarar que amamos os que amamos e que o trabalho nos distrai do que é realmente importante e que não adiemos estender a mão ou fazer uma festa agora, neste preciso momento, antes que seja tarde.

Bom... os amigos, suponho, são para isto mesmo, não é verdade? Para partilhar as dores e as preocupações. E para pacientemente apagar mensagens umas atrás das outras, mesmo que no meio da operação quotidiana se elimine por engano aquela mensagem mesmo importante de que estávamos à espera há três dias.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Back to Africa

Nunca gostei de frio. Sou uma alma de paisagens quentes com som de ondas ao fundo e estes dias gelados que nos têm perseguido produzem em mim o efeito de fuga.
Embrulho-me em cachecóis e recolho-me às lembranças de onde não havia frio. Lá longe na infância africana.
Quando os caranguejos ousavam fazer corridinhas pela beira da água, na Baía Fernão Veloso.


Era a minha praia preferida e, nesses tempos, as distâncias eram muito grandes mas venciam-se com facilidade. Duzentos quilómetros de avião (um pequeno Dakota enfeitado com cortinas de flores às pintinhas) e podia-se chegar ao mar aí pelas sete da manhã (o sol nascia às cinco).
Parecia que ele, o mar, estava lá só porque lhe tínhamos mandado dizer que íamos, tão perfeito era, tão incapaz de nos desiludir, como um dedo divino pousado sobre as nossas pálpebras.

A cidade ficava no interior, de prédios baixos e largas avenidas traçadas a régua e esquadro, como acontece sempre com as cidades novas, construídas de raíz para responderem a necessidades inesperadas. Era uma cidade quente, familiar e ajardinada. Dizem-me que agora já não é tanto, parece que não há muito ânimo para a paciência namoradeira que os jardins exigem.


Era a terceira cidade. Ao domingo, na feira do pau-preto, vendiam-se por uma "quinhenta" (cinco tostões) caixas, caixinhas, esculturas e cestas.



No horizonte recortava-se a Cabeça-do-Velho, aquela montanha azul ao fundo que se via de todas as janelas.



Antes tinha eu morado na segunda cidade. Se fechar os olhos, ainda consigo sentir o cheiro das acácias que bordavam os jardins da Ponta Gea. Também tive um, onde me perdia como se fosse uma floresta. Mas era porque eu era muito pequena então e tudo me parecia demasiado grande.

Às vezes viajava para a primeira cidade. Aquele ali, atrás da catedral, é o prédio Funchal, onde costumava ficar, algures numa daquelas janelas do sétimo andar.

Esta era uma cidade grande, a maior que eu conhecia nesses tempos, muito diferente da pequena Lisboa, onde tudo me pareceu estreito e velho, quando cheguei.


Mas o sítio mais bonito de todos era a Ilha.

De antigas casas portuguesas inesperadamente acomodadas em ruas tropicais.


E de candeeiros de esquina indiferentes ao sol, como se ali tivesse pousado um eterno Gama acabado de chegar do Bairro Alto.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Uma pedra politicamente incorrecta...

Desde que me conheço que me conheço pacifista. Vi de muito perto a guerra, conheço muito bem os guerreiros e nunca lhes vi senão sangue na espada, e o gosto do sangue e um olhar que atravessa a carne e o espírito em busca duma glória ferrugenta e baça. Nos últimos dias, sempre que ligo a televisão vejo um carrocel de cidades ocidentais onde multidões se manifestam contra a ofensiva hebraica sobre a faixa de Gaza. Os jornalistas vão enumerando as cidades e o número estimado de manifestantes. Não fazem comentários adicionais porque os jornalistas têm medo de serem acusados de muitas coisas que na Escola Superior de Comunicação Social lhes disseram que não podiam ser. Se não olharmos para as imagens, ficamos, portanto, com a ideia de que as populações anónimas, os cidadãos comuns (os políticos são outra raça, que joga o seu próprio jogo) de todo o ocidente democrático e cristão condenam a atitude bélica dos israelitas. Mas se olharmos para o écran não podemos deixar de notar que todos os manifestantes usam véu ou lenço islâmico e que as feições não são nada ocidentais. É evidente que os emigrantes islâmicos espalhados pela Europa têm todo o direito de se manifestar contra uma ofensiva militar contra o seu irmão palestiniano. Deus me livre de os censurar por isso!
Oiço dizer que o objectivo dos israelitas é destruir as estruturas militares que têm servido de base para o lançamento de mísseis palestinianos sobre Israel. E pergunto-me: porque não vi noticiado na televisão cada míssil que os palestinianos lançaram sobre Israel? Porque não vi, então, manifestações dos judeus espalhados por todo o ocidente contra os ataques militares dos seus irmãos israelitas? Pergunto-me também, a mim que sou pacifista, o que faria eu se o meu vizinho do lado todos os dias me atirasse pedras pela janela da sala e soubesse que a polícia não consegue fazê-lo parar com isso? Sim, o que faria eu? Talvez pensasse em quem terá atirado a primeira pedra.
E lá ia eu pela Antiguidade fora até ao quarto milénio antes de Cristo, quando a Palestina não era habitada nem por árabes nem por hebreus. Os donos da terra, seus primeiros habitantes, eram os cananeus, toda a gente sabe. Não que fossem muito diferentes, eram semitas como os árabes e os hebreus. Mas extinguiram-se depois da conquista da Palestina pelos hebreus. Já cá não estão para reivindicar nada e, se tivermos de procurar a primeira pedra, talvez ela seja a que serviu de fundação às primeiras casas dos reinos de Israel e depois à que começou a construção do templo de Salomão. A vida nunca lhes foi fácil. Foram dominados por assírios, caldeus, macedónios, egípcios e sírios. Os últimos foram os romanos e toda gente sabe como a história acabou: a destruição do Templo e a expulsão forçada dos judeus da terra que ocupavam há milhares anos, a sua Terra Prometida, rumo à diáspora, à existência envergonhada e perseguida no mundo dos cristãos que os marcaram para sempre com a culpa pela morte de Jesus. Com a terra aberta, foram chegando os árabes, que se instalaram. Salto por cima de muitos séculos, de bizantinos, turcos e cruzados. Durante a Primeira Guerra Mundial, o império britânico tentou captar as simpatias dos chefes árabes do Médio Oriente prometendo-lhes a independência em troca de ajuda na luta contra os turcos. Ao mesmo tempo, porém, os ingleses assinam a Declaração de Balfur, em que garantem aos judeus o seu regresso a casa: a criação de um estado hebraico na Palestina. Judeus de todo o mundo convergiram para a Palestina e começaram a juntar as pedras para a sua nova futura casa. No fim da Segunda Guerra, os Aliados estavam aborrecidos com os árabes, que tinham simpatizado demais com o Eixo, e estavam compungidos com o que se revelava do Holocausto. Ajudaram no que puderam os judeus a emigrarem para a Palestina e a edificarem o seu próprio país. Ficou combinado: em 1948 seriam criados dois estados autónomos, o da Palestina e o de Israel. Na data marcada, as tropas britânicas (que administravam o território) fizeram as malas e vieram-se embora. Os dois novos estados declararam ambos a sua independência e, para comemorar devidamente o evento, os países árabes desencadearam um ataque em massa contra Israel. Olha, será que encontrei a primeira pedra? É que depois disto nunca mais parou o «Bato-te porque tu me bateste!», vindo dos dois lados.


À partida, não gosto nem desgosto de nenhum povo em especial. Mas quando olho para o Médio Oriente, vejo um povo que construiu um país democrático e economicamente progressista das areias do deserto, sob a chuva de pedras do vizinho. E vejo outro povo que, apesar de ajudado por poderosos amigos árabes, imola os seus filhos sobre o altar das vítimas, monta o espectáculo da lamentação televisiva como se tivesse as mãos limpas e idolatra chefes corruptos cujas esposas e filhos vivem nos melhores hotéis de luxo do ocidente e se vestem de Chanel, como a senhora Arafat (paz à alma do seu corrupto marido!).
Não gosto de pedras que não deixam passar a luz, definitivamente não gosto. E não consigo deixar de pensar em todas estas coisas, sempre que assisto à abertura dos telejornais...