quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

IN TABERNA




Quando estamos na taberna
não nos importamos com a sepultura,
mas atiramo-nos ao jogo,
sobre as quais sempre suamos.
O que acontece na taverna,
onde o dinheiro é o anfitrião,
se quiseres saber
ouve o que eu te falo.

Uns jogam, outros bebem,
outros se comportam indiscretamente.
Mas dos que se entregam ao jogo,
uns ficam nus,
outros vestem-se,
alguns se vestem com sacos.
Lá ninguém teme a morte,
Mas, por Baco, lançam os dados à sorte.

Primeiro pela conta do vinho,
do qual bebem os libertinos;
bebem de novo pelos cativos,
depois bebem três vezes pelos vivos,
quatro vezes por todos os cristãos,
cinco vezes pelos fiéis defuntos,
seis vezes pelas freiras infiéis,
sete vezes pelos ladrões.

Oito vezes pelos frades depravados,
nove vezes pelos monges dispersos,
dez vezes pelos navegantes,
onze vezes pelos discordantes,
doze vezes pelos penitentes,
treze vezes pelos viajantes.
Tanto pelo papa como pelo rei
bebem todos sem lei.

Bebe a dona da casa, bebe o dono,
bebe o soldado, bebe o clérigo,
bebe ele, bebe ela,
bebe o servo com a serva,
bebe o ágil, bebe o preguiçoso,
bebe o branco, bebe o negro,
bebe o persistente, bebe o instável,
bebe o rude, bebe o meigo.

Bebe o pobre, bebe o doente,
bebe o exilado e o desconhecido,
bebe o menino, bebe o velho,
bebe o bispo e o deão,
bebe a freira, bebe o frade,
bebe a avó, bebe a mãe,
bebe esta, bebe aquele,
bebem cem, bebem mil.

Pouco duram seis moedas
onde imoderadamente
todos bebem sem medida,
ainda que bebam com alegria.
Assim todos dizem mal de nós
e assim seremos pobres.
Que vão para o inferno os que nos censuram
e que seus nomes não sejam escritos com os dos justos.



Os goliardos diziam-se clérigos, que era a designação corrente dos estudantes universitários nos séculos XII e XIII, mesmo daqueles que nunca viriam realmente a tomar ordens. Alguns viviam até muito tarde essa doce condição de estudantes boémios, cultos (às vezes iam às aulas), divertidos, irónicos e devotados à vida alegre e despreocupada. Viviam de expedientes. Jogavam aos dados. Às vezes ganhavam, às vezes perdiam. Lembravam-se da Senhora Fortuna, que comanda a Roda (http://www.youtube.com/watch?v=nqw3KWb9bH4&feature=related ). Mas a maior parte das vezes preferiam esquecer quase tudo numa caneca de vinho. Quando voltavam a lembrar-se escreviam belos poemas, reencontrados em 1803, no Mosteiro beneditino de Beuren. A tradução para português não lhes faz justiça mas Carl Orff fez:
http://www.youtube.com/watch?v=JI8AYMF17pk&feature=related

domingo, 13 de janeiro de 2008

A PAIXÃO

Tenho estado em grave coita

por um cavaleiro que tive,

e quero que para sempre se saiba

como o amei excessivamente;

agora vejo que sou traída

porque não lhe dei o meu amor

e por isso tenho estado em grande angústia

no leito e quando estou vestida.

Quisera ter o meu cavaleiro

uma noite, nu nos meus braços

e que ele se tivera por ditoso

só que eu lhe fizesse de almofada;

pois estou mais enamorada

que Floris esteve de Brancaflor:

entrego-lhe o meu coração e o meu amor,

o meu juízo, os meus olhos e a minha vida.


Formoso amigo, amável e bom,

quando vos terei em meu poder?

oxalá pudesse dormir convosco uma noite

e dar-vos um beijo amoroso.

Sabei que grande desejo teria

de ter-vos no lugar do marido

desde que me tivésseis jurado

fazer quanto eu quisera.


A Condessa de Dia viveu na segunda metade do séc.XII. Foi a mais ilustre das trovadoras provençais. Há dúvidas quanto à sua exacta identidade mas uma tradição identifica-a com a esposa do Conde Guilherme II de Poitiers e explica que se apaixonou perdidamente pelo também trovador Raimbaut d’Aurenga, a quem teria dedicado as suas canções. Na Provença desse tempo, amar o marido era sinal de grande descortesia e de falta de elevação espiritual, pois a contratualidade e conveniência económica que o casamento envolve não poderia conviver com o sentimento nobre e desinteressado do verdadeiro amor. Por isso, a paixão dava-se e vivia-se sem receio, como coisa que só obedece às suas próprias regras.







domingo, 6 de janeiro de 2008

AL-MUTAMID


Solta a alegria! Que fique desatada!
Esquece a ânsia que rói o coração.
Tanta doença foi assim curada!
A vida é uma presa, vai-te a ela!
Pois é bem curta a sua duração.


E mesmo que tua vida acaso fosse
De mil anos plenos já composta
Mal se poderia dizer que fora longa.
Que seres triste não seja a tua aposta
Pois que o alaúde e fresco vinho
Te aguardam na beira do caminho.
Que os cuidados não sejam de ti donos
Se a taça for espada brilhante em tua mão.
Da sabedoria só colherás a turbação
Cravada no mais fundo do teu ser
É que, de entre todos, o mais sábio
É aquele que não cuida de saber.



Al-Mutamid nasceu em Beja em 1040 e morreu em Marrocos em 1095. Foi califa de Silves, onde se dedicou à poesia, à música e ao amor pelas belas mulheres. Evoca em muitos poemas os lugares daquela que foi a sua cidade do Al-Garhb preferida:

Ai quantas noites fiquei,
Lá no remanso do rio,
Nos jogos do amor
Com a da pulseira curva
Igual aos meandros da água
Enquanto o tempo passava..
E me servia de vinho:
O vinho do seu olhar
Às vezes o do seu copo
E outras vezes o da boca.
Tangia cordas de alaúde
E eis que eu estremecia
Como se estivesse ouvindo
Tendões de colos cortados.
Mas retirava o seu manto
Grácil detalhe mostrando:
Era ramo de salgueiro
Que abria o seu botão
Para ostentar a flor.


Por essa altura, a Península cristã, de façanhudos e analfabetos cavaleiros, estava longe da sua elevação artística e civilizacional...



quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

O DEUS DAS PORTAS


Certos deuses guardam as entradas de costas voltadas para nós.




Ele não.
Bifronte, esguarda a paisagem de face virada para a frente e de face virada para trás.

Mostra-nos portas que se fecham secamente...



E portas fechadas com exuberância.


Saturno concedeu-lhe o dom da dupla ciência.

A do que já passou e a do que está para vir.




Diz-nos que, se estiverem fechadas, se abrem devagar.




E que certas coisas não podem ir na travessia.

É preciso deixá-las para trás.



Depois de atravessadas, mostra-nos a luz que se recorta na passagem.



Jano. Janeiro. Boas entradas.