terça-feira, 24 de março de 2009

A VIAGEM. 1. Despertar

A caneca, finalmente vazia, caíu no chão lajeado e rolou com um estrondo metálico até ser detida por um pé imóvel. Daí a pouco tocariam a matinas em todas as torres e o silêncio cairia finalmente sobre as mesas e os bancos, entregando à força do sono os que tinham bebido e cantado e praguejado durante toda a noite. Desta vez Túndalo não sentia aquele torpor que anunciava a chegada do sono e por onde se deixava escorregar satisfeito. Tinha bebido como nos outros dias, tinha jogado e mentido e feito batota e cometido o pecado da carne e todos os outros que lhe alegravam a vida. Mas em vez da plenitude do prazer habitual, sentia uma dor indecifrável no peito, um aperto angustiante que não conhecia, uma espécie diferente de torpor, sem satisfação.


Talvez devesse esforçar-se por ir para casa em vez de se deixar ficar por ali até de manhã. Estendeu o braço esquerdo para se levantar com o auxílio de um pilar da parede mas o braço não quis ajudá-lo porque parecia atacado por um formigueiro.
Túndalo sentiu que alguma coisa não estava bem e alarmou-se. Esforçou-se por se levantar e sentiu uma forte picada no peito, do lado esquerdo. A ideia da morte surgiu-lhe como um relâmpago nos olhos e quis gritar por socorro. Mas todos os que tinham ficado na tarberna estavam completamente bêbados e dormiam profundamente com roncos sonoros que ninguém ouvia senão ele. Mendo, o taberneiro, fechara as portas e encerrara as portadas das janelas. Dormia, também ele, na sua enxerga na câmara ao fundo, e só voltaria a levantar-se perto da hora do meio dia. Não havia, portanto, quem lhe acorresse.

Túndalo quis gritar que não estava ainda na sua hora e que a morte não poderia levá-lo assim tão novo. Tinha vivido com prazer e não se tinha preparado para a morte. Contava fazê-lo quando fosse mais velho e não aceitaria que a morte o traísse desta maneira. Foi com este sentimento de surda revolta por tamanha injustiça que sentiu escurecer tudo à sua volta e deixar-se escorregar suavemente para o chão. Fechou os olhos e entregou-se ao inevitável. O corpo tornou-se leve, os vapores da cerveja despareceram e o pensamento tornou-se-lhe de repente frio e lúcido como nunca fora.

Túndalo abriu de novo os olhos, surpreendido por não estar morto. Mais surpreendido ainda ficou quando viu aquele rosto jovem, fresco e sorridente, debruçado sobre ele.
- Como entraste aqui, rapaz? Vai-te embora, isto não é lugar para ti!
O jovem riu com uma gargalhada cristalina como a água a ser soprada pelo vento.
- Enganas-te, Túndalo. Aqui é que é o meu lugar!
- Mas quem és tu? Que me queres?
O moço estendeu-lhe a mão a ajudou-o a levantar-se. E Túndalo foi capaz, porque a dor tinha desaparecido e os músculos estavam perfeitamente afinados e obedientes. Parecia-lhe, aliás, que nunca se sentira tão bem em toda a sua vida. Observou o rapaz, que parecia ter uns 15 ou 16 anos e notou a sua beleza invulgar. O cabelo era claro, a barba ainda não lhe despontara e os olhos pareciam feitos só de luz, sem nenhuma cor. Usava um vestido branco simples, cingido apenas por uma cinta e calçava umas sandálias de tiras como as de alguns monges.
Havia nele uma autoridade estranha e, sem saber porquê, Túndalo sentiu-se obrigado a obedecer-lhe.




(Continua...)