domingo, 14 de setembro de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 4. A CARTA.




Todos sabem que, quando lhes falta o sol, as flores escurecem. Misteriosas são aquelas que perdem as cores sem que a ninguém seja dado ver o que lhes falta. Assim foi Lataba. Era a mesma e não era. Demudava-se-lhe a cor ou o brilho, não se poderia dizer. Calava-se quando as outras riam, escusava-se com um pálido sorriso quando lhe pediam que dançasse. Encostava o ombro à janela e ficava a mirar as águas do Tejo, que passavam. E tão grande pesar lhe crescia no coração que começou de perder sua formusura mui desmesuradamente.




Alquifa via-a assim e esperava o dia em que lhe dissesse as suas razões. Mas Lataba nada dizia porque muito se envergonhava do que lhe escurecia o coração e sabia que nada de bom depois daquilo lhe poderia vir. E disse-lhe Alquifa:
- Amiga, tu bem sabes que desde que eu nasci nunca fiz coisa que te não dissesse e de te falar sempre me veio consolo e ajuda. E o mesmo cuidava eu de ti e agora vejo que algum mal te atormenta e pesa-me que não mo queiras dizer. Se é coisa em que eu te possa aconselhar, peço-te que mo contes e ajudar-te-ei.
Então lhe contou Lataba tudo o que se passara com el rei Rodrigo. E disse-lhe a prudente Alquifa:
- Amiga, digo-te que se tal coisa me acontecesse, o melhor que eu faria seria contar tudo a um homem em quem confiasse e de tal maneira que eu soubesse que me defenderia.
Respondeu Lataba:
- Se aqueles que ouvissem o que se passou julgassem o caso tal como aconteceu, eu não hesitaria em contá-lo a meu pai. Mas eu sei bem que o meu pai é homem de bom siso e eu bem vejo que todos os homens sisudos julgam as mulheres por más e por isso não ouso mandar dizê-lo ao meu pai, porque tenho medo que não acredite na minha inocência e julgue que o fiz por malícia e me abandone.
E disse Alquifa:
- Não tem sentido isso que dizes, pois os homens julgam sempre como lhes dermos a julgar. E sabe por certo que, se nada fizeres e el rei continuar a demandar-te, não pode estar que não emprenhes e, depois depois que fores prenhe, não poderás mais esconder o que aconteceu. E a rainha, que te quer como a uma filha, se o souber difamar-te-á e aí, sim, serás a mais infeliz mulher que pode haver. Por isso, se te calares não poderás evitar que seja sabido, com grande dano e vergonha tua. Mas se o contares com sabedoria e a quem deves, nunca te poderão acusar de nada. O melhor que podes fazer é escrever ao teu pai uma tal carta que o faça julgar o caso como a ti convém.


E assim sentaram-se ambas a escrever a carta, que uma ditava e a outra escrevia:
«Ó mui honrado e discreto, sisudo, prezado e temido senhor de Ceuta, Conde D. Julião, pai senhor, eu, Lataba, vossa desonrada filha, me mando encomendar a vós e beijar vossas mãos. A desonra da filha ofensa é do bom pai. Quero que saibais que vós, cuidando fazer vossa honra e meu bom futuro mandando-me para casa d’el rei D. Rodrigo, sucedeu o contrário, porque fizestes vossa desonra e minha grande perda, porque el rei Rodrigo, muito sem meu grado e contra minha vontade, deitou-se comigo. E por isso vos rogo, senhor, por Deus e por piedade, que me mandeis buscar, senão crede que eu me matarei com as minhas próprias mãos, pois eu antes queria cem vezes morrer do que viver mais um dia em casa d’el rei D.Rodrigo. Se quereis minha vida, mandai-me buscar para que veja ainda uma vez a minha mãe, senão despeço-me de vós.»
Entregue a carta a um escudeiro, com instruções para não parar no caminho até que chegasse a Ceuta, juntaram-se ambas às outras donzelas, fazendo por não dar sinais de nenhuma estranheza.



Quando Julião leu a carta da sua filha, o desgosto que sentiu foi tão grande que abalou aquele homem tão experimentado na guerra. Sem nada dizer a ninguém, mandou aparelhar uma galé e meteu-se ao mar. E andou tanto e com tão bons ventos que depressa chegou a Toledo. Ouvindo anúncio da sua chegada, Rodrigo, que o prezava como a nenhum outro cavaleiro, apressou-se a ir recebê-lo. E logo que fizeram as saudações que a tais grandes senhores pertenciam, perguntou-lhe:
- Pois D.Julião, que vos fez vir a Toledo tão inesperadamente? Algum mal porventura vos veio?
- Senhor – disse Julião – não queira Deus que a mim venha senão bem, enquanto vós fordes vivo, porque a vossa fortuna me dá tanto ânimo que nunca homem se cruzou comigo na guerra que o eu não vencesse. E, se vos apraz, contar-vos-ei como se passou a batalha que tive com Moluca, senhor de Calçom.
E Rodrigo disse que lhe prazia. E o Conde descreveu-lhe com que esforço, seu e de seus parentes e vassalos, conseguira mais uma vez suster o desejo dos mouros de se aproximarem do mar e como defendera o senhorio cristão de Ceuta. E como, chegado da batalha, fora achar muito doente a condessa sua esposa, e como lhe pesara tal coisa porque por aquela esposa era ele muito respeitado e temido em Ceuta, pelos parentes poderosos que ela tinha entre os mouros. E como ela lhe pedira que visse ao menos uma vez a sua filha, que muito amava, antes de morrer.
Ouvindo isto os vassalos que com o Conde vinham, e sabendo que era verdade a história da batalha mas não a da doença da esposa, cuidaram que fortes razões teria o Conde para levar embora a sua filha.
E disse-lhe Rodrigo:
- Por boa fé, D. Julião, muito me apraz de como vos haveis saído bem na batalha! E se vencestes Moluca, que é o mais forte, não há mouro nenhum de além-mar de que eu haja de temer-me. Mas o que dizeis da Condessa é coisa triste para mim, que a tenho por mui boa dona, a quem Deus logo dê saúde! Por ela vos entrego vossa filha mas tomai nota: não para que fique sempre convosco! Logo que sua mãe for curada, quero que ma envieis de novo, na companhia de todo o seu séquito como agora está, porque muita honra e alegria traz à minha casa.
O Conde hesitou por momentos, como se algumas palavras lhe quisessem romper os lábios mas ele as prendesse com uma corrente de ferro. Deu um passo em frente e olhando Rodrigo no olhos, disse-lhe apenas:
- Senhor, quando Deus quiser que ela venha, eu vo-la farei vir com tal companhia e séquito como nunca outra donzela entrou em Espanha!
E dito isto, recolheu à galé, onde lhe trouxeram a sua filha, com suas donzelas e servidores, e fizeram-se depressa ao mar.



(continua...)