sexta-feira, 23 de maio de 2008

A boneca



Só quando ouviu a porta fechar-se se deixou escorregar pela parede. Como uma mão que ampara, foi ela que a depositou devagar no chão, onde se sentou de pernas encolhidas. Gostaria de chorar para molhar as mãos mas tudo o que tinha dentro parecia estar cosido com linha e agulha, em pesponto apertado. Um zumbido nos ouvidos fazia-a sentir-se muito distante. Talvez fosse aquilo que sentiam os doentes em coma. Uma morte no corpo em estado de aguda consciência. As ideias corriam-lhe com toda a clareza mas o corpo não lhe obedecia.




Na parede em frente, cortada a meio por um raio de sol de fim de tarde que entrava por uma nesga de janela, viu-se como num filme de película amarelada. Era lá pelos seus 6 anos. A sua melhor amiga, com quem passeava de mão dada e com quem partilhava todos os chocolates e desgostos, num acesso de fúria arrebatava-lhe das mãos a boneca e arrancava-lhe os cabelos violentamente. Ficara assim, encostada à parede, paralisada pela surpresa e incapaz de se defender por não esperar nenhum ataque de alguém com quem sujava os dedos na mesma bola de Berlim. Durante o resto do dia mantivera-se hirta na carteira que partilhavam na sala de aula, com receio que a ponta da bata da outra lhe tocasse.




Não se queixara à professora e dissera à mãe que tinha ela própria estragado a boneca. Ficara três dias de castigo mas mantivera-se firme. Não queria admitir que se enganara ao entregar à Nani todo o seu afecto. Preferia levantar a cabeça orgulhosamente. E não queria ouvir «Não sabes escolher as companhias!» porque a mãe e o pai davam muita importância a essa coisa das companhias. Ela percebia que o assunto tinha regras mas ainda não tinha percebido quais eram e sentia que esperavam dela uma competência inata para escolher companhias. Competência que ela pelo visto não tinha.




Talvez a culpa do que a Nani fizera à boneca fosse, de facto, um pouco sua. A mãe dizia-lhe que não levasse as bonecas para a escola para não se estragarem. Naquela época as bonecas guardavam-se em cima do guarda-fatos e havia algumas com que só se podia brincar em dias especiais. Para não se estragarem. Mas ela insistira em trazer uma das bonecas e agora a pobrezinha tinha o aspecto bizarro de um senhor careca com bochechas rosadas. Culpa sua, sem dúvida. E porque se lembrara de contrariar a Nani nessa manhã? Porque cedera à tentação de ir brincar com as irmãs Mendonça em vez de ficar com a Nani como de costume? As duas irmãs eram populares entre as meninas da escola. Além de bonitas, vinham de um mundo diferente. A mãe deixava-as fazer muitas coisas que as outras mães não deixavam, podiam sujar-se, diziam algumas palavras de calão, não tinham horas certas para almoçar nem para jantar e às vezes faltavam muitos dias seguidos à escola. Os pais tinham uma pequena companhia de teatro, com a qual viajavam pela província. A Marta e a Sofia sabiam histórias divertidas e convidavam algumas das meninas para representarem com elas os papéis de algumas personagens dos teatrinhos que improvisavam no recreio. Ela sempre quisera ser convidada para aquela brincadeira fascinante e nessa manhã tinham-na chamado para fazer de Bela na história da Bela e o Monstro. E ela fora logo, sem pensar na Nani. Sim, a culpa tinha sido sua. Podia ter feito as coisas de outra maneira, podia ter disfarçado a felicidade no fim do recreio, pelo menos ao pé da Nani.



Tentou levantar-se. As pernas continuavam a não lhe obedecer. Olhou os pulsos vermelhos e marcados. Aquelas mãos em que se entregara para ser afagada!... O barço que ele lhe torcera atrás das costas doía-lhe muito. Experimentou mexê-lo. Não estava partido. Mas doía-lhe como se estivesse. Os gritos dele formavam ainda uma onda sonora presente, que a atordoava. Queria pedir-lhe que se calasse, tapara os ouvidos para não o ouvir mas isso só o irritara ainda mais. Não sabia o que fazer para não o irritar. A culpa fora sua. Fechou os olhos. As primeiras lágrimas começaram a correr. Se a mãe soubesse olharia para ela com um ar cansado e diria, entre dois suspiros: «Continuas a não saber escolher as companhias!...»




Há alguns dias, o bastonário da Ordem dos Advogados defendeu publicamente que a violência doméstica deve deixar de ser um crime público. Disse que existe na actual lei "uma espécie de feminismo impertinente" e que, depois de agredida, a mulher deve poder escolher livremente se quer ou não apresentar queixa. Disse ainda que as mulheres que apresentam queixa normalmente querem vingança e não justiça.
Quem deu a este senhor o direito de dizer estas coisas em público?
E o que pensam as advogadas que ajudaram a elegê-lo?

sexta-feira, 16 de maio de 2008

X Files


Enfim, o regresso!
Pousaram-me hoje, às primeiras horas da manhã, ainda o sol não tinha nascido. Viajámos durante a noite e por isso não pude apreciar a paisagem durante o caminho. Estava escuro e aproveitei para dormitar mais um pouco.



Estava bastante cansada da estadia prolongada em terras estranhas.
Mal eu sabia, quando empurrei o gato para o lado e me instalei confortavelmente sobre as páginas do livro para descansar um bocadinho, o que me esperava. Em poucos minutos, a luz verde do candeeiro foi aumentando de tamanho. Julguei que já estava a sonhar. Mas não. Senti-me logo a seguir elevada no ar como se estivesse a ser puxada por um aspirador gigante.


Lá do outro lado, as coisas não eram muito diferentes. Talvez no tom mas não na essência. Passámos umas semanas agradáveis. Fiz bons amigos.
Lá não é proibido fumar em locais nenhuns e já resolveram o problema do cancro do pulmão. Toma-se umas pílulas cor-de-laranja todos os dias e resolvem-se vários problemas de uma vez: eliminam toxinas, cancros, excesso de açúcar no sangue e baixam a tensão arterial. E sabem a tangerina.
Estão a desenvolver rapidamente o sistema de teletransporte, apesar de enfrentarem alguns problemas com os funcionários das agências de viagens, que têm feito manifestações de protesto e ameaçam emigrar massivamente para cá, diminuindo drasticamente o número de contribuintes fiscais. Ainda não encontraram uma alternativa eficaz ao fisco. Mas têm desenvolvido estudos nesse sentido. Queriam saber como é que por cá tratávamos do assunto e ficaram muito desiludidos com o que lhes contei.



Perguntaram-me pelo Aldous. Primeiro não os percebi mas depois explicaram-me que o levaram lá de visita aqui há uns bons anos mas que não tinham gostado muito dele. «O Huxley?», perguntei. «Esse mesmo !», responderam. Parece que era muito indiscreto e queria saber tudo o que eles planeavam para o futuro, mesmo os planos mais secretos. Então resolveram divertir-se um pouco e contaram-lhe umas tretas sobre produzir populações fabris em série dentro de provetas, com umas gotinhas de álcool para não serem demasiado inteligentes. Parece que o Aldous acreditou.
Não gostei do clima. É muito cinzento e a mim faz-me falta o sol. As esplanadas não têm graça nenhuma e os pedidos fazem-se num terminal de computador que existe em cada mesa. Convidei-os logo para virem uma noite destas aos fados de Alfama e ficaram entusiasmados.
Expliquei-lhes que os pastéis de bacalhau com arroz de feijão temperados com tinto da casa são muito melhores do que os filetes de fitorrinomanso com salada de alvéolos acidificados que por lá servem. Mas o tokie que eles bebem é muito bom, isso vos garanto. Não quis perguntar de que é feito para não parecer mal educada mas pareceu-me uma coisa de alta qualidade.
Bem, estou cansada. Foram dias muito cheios.
Com a sensação de como é bom, apesar de tudo, o regresso ao lar e às coisas familiares, fiquei a acenar-lhes enquanto os via teletransportarem-se para longe.
Despediram-se prometendo que andarão por aí.