domingo, 28 de setembro de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 5. A CONDESSA

Lataba adormecera. Fazendo sinal às outras donzelas para que velassem o seu sono, a Condessa retirou-se silenciosamente para os seus aposentos. Escondeu o rosto nas mãos. A dor que sentia pela história que a filha lhe contara entre lágrimas tornava-se, no seu peito, numa espécie de novelo feito de raiva e pena que se desenrolava até à garganta.- Onde está Julião, meu marido? – perguntou às damas que a acompanhavam.- Senhora, chamou todos os de seu conselho e está reunido com eles. Pede-lhes ajuda para decidir o que fazer.A Condessa levantou-se, decidindo num momento participar naquele conselho. Em corte de homens não seria esperada a sua ida mas, sem pensar nisso mais do que um momento, a Condessa tirou o toucado florido que trazia e substituíu-o por outro, de veludo negro.


Entrou na sala onde o Conde estava reunido com os seus vassalos. Encontrou-o de rosto desfeito, entre o silêncio total que se fizera depois de terem os vassalos escutado a verdadeira razão por que Lataba regressara a Ceuta. Vendo-a chegar, o Conde ergueu os olhos e perguntou-lhe:
- E pois, Senhora, porque vindes cá?
A Condessa deu dois passos em frente, colocou-se ao lado do marido e disse:
- Eu venho como a mais desaventurada mulher que nasceu em Ceuta, desonrada pelo maior traidor que o mundo conheceu! E, amigos, por Deus e por mesura, rogo-vos que me ouçais um pouco!
E todos os vassalos acenando com a cabeça, mostraram vontade de a ouvir. E disse ela:
- Amigos, a desonra pesa menos a quem tem modos de a cobrar! E por isso digo ao Conde D.Julião que tudo faça para cobrar esta desonra que nos foi feita! E se ele for homem de tal natureza que tenha em pouco este feito, eu digo chãmente que daí lhe virá muito mal, pois que logo me despedirei dele e direi a todos que não sou sua mulher, e ir-me-ei para Cospi, que é minha herdade, e para outros castelos que tenho, que foram do meu pai, e de lá lhe farei tal guerra que, antes de um ano, todos vós serão obrigados a fugir de Ceuta para não morrerem! Rogo-vos que não tomeis em pouco este assunto. E vede, Conde, quanto bem fez Deus a vossa filha, que tudo deitou a perder aquele traidor ! Porque ela era a mulher mais bela e de melhores dons que havia, e a mais filha d’algo que há em Ceuta até Marrocos. E mesmo que não tivesse todas estas qualidades e que fosse a pior do mundo! Senhor Conde, é vossa filha! Deveis doer-vos do seu mal que tanto lhe pesa como todos vimos que lhe pesava! E, amigos, não sei que mais vos diga senão que a dor que tenho desta filha, que assim vejo destruída, me fará morrer antes do meu dia!
E dizendo isto, um soluço lhe atravessou a garganta e a fez fraquejar e apoiar-se à cadeira do marido. Os vassalos baixaram os olhos e o Conde, amparando-a, disse-lhe:
- Senhora, quando aqui chamei estes bons cavaleiros não foi por outra coisa senão para lhes dizer isso mesmo que vós dissestes. E agora só lhes peço que me digam o que devo fazer, porque a dor que me atravessa o coração não me deixa ver com a razão o caminho a tomar.
Os vassalos olharam uns para os outros e não se decidiam a quebrar o silêncio. Foi então que se levantou Ricardo, que se despedira à varanda de Lataba quando ela partira para Toledo:
- Pois todos vós vos calais, quero eu falar, ainda que por minha juventude mo leveis a mal! Aqui juro eu a Deus e sobre minha lei que se eu fosse senhor poderoso e houvesse tal filha e ma desonrasse um homem a quem eu tanto serviço fizesse como havedes feito a Rodrigo, que não deixaria de cobrar dele justiça de tal modo que nunca o mundo o esqueceria! E se com ele quiserdes haver guerra, Senhor D. Julião, aqui me tendes para isso, com a lealdade que sempre vos tive e com duzentos cavaleiros filhos d’algo que farei trazer de Brapaquedo.
Dizendo ele isto, calou-se. Ergueu-se então um bom cavaleiro, homem de muita coragem e experiência de guerra, tido por todos como de bom aviso e comprovada sisudez. Chamava-se D.Simão e para ele se voltaram todas as cabeças:
- Senhor, Deus, que sabe todas as coisas, sabe bem que, desde que eu fui teu vassalo sempre te dei aquele melhor conselho que eu entendi. E bem te digo que nunca te vi em tempo que te mais mester fizesse bom conselho que agora. E por isso te digo que eu seria aleivoso se não te dissesse agora o que é de razão. Não me parece bem que vás contra el rei D.Rodrigo para lhe fazer guerra. E por estas razões. Primeiro, porque Rodrigo é teu senhor e juraste-lhe lealdade, apesar de não teres dele recebido a tua terra. Segundo, porque bem sabes como Deus o tem protegido em tudo o que faz e o tornou o homem mais poderoso de Espanha. E nós sabemos bem que até hoje nunca tu fizeste nada contra o direito, de que te possam acusar. E, se tu travares com ele guerra e o venceres, todos te desprezarão por teres destruído o teu Senhor e, se vores vencido, ninguém te lamentará, antes todos dirão que foi justiça de Deus, porque o desafiaste contra o direito. E, Senhor, o meu conselho é que não faças nada e que deixes isto nas mãos de Deus, que te dará a justiça que procuras. Porque, Senhor, quando o homem alguma coisa faz por que o possam censurarm, de todo o mundo deve ter medo. E não penses que te digo isto por meu bem ou por receio da guerra, que tu bem sabes como o meu braço empunhará a espada, se tu quiseres, enquanto o fôlego no corpo me durar!
Ainda as palavras de D.Simão não estavam terminadas e já se erguia a Condessa. As lágrimas tinham secado e os olhos faiscavam-lhe.
- Ouvi, D.Simão! Nunca Deus mande que vós sejais desonrado, porque, se o fôsseis, muito daríeis o conselho doutro modo! Mas Deus não permitirá que estes cavaleiros vos creiam. Ó homem bom ! E não haveis vergonha do que dissestes, que guardasse lealdade a um homem que tanta deslealdade lhe fez, sendo-lhe ele sempre tão leal e amigo ?! Ó varão! E não sabeis vós quanto afam e trabalho haveis tomado e quantas espadadas e setadas haveis levado para nunca el rei Rodrigo haver dano por estes lados? E digo-vos mais: que antes eu queria ser tão pobre de quanto no mundo houvesse e antes queria andar pelas ruas pedindo do que não fazer tudo para me vingar! Senhor D. Julião, por Deus e por mercê, se não quereis fazer a guerra, deixai que a farei eu, pois eu tenho tal confiança na Virgem Maria, pela qual eu troquei a fé em que nasci e deixei o meu pai e a minha mãe e os meus irmãos e a grande fortuna e todos os bens que eu tinha na minha terra, que ela não quererá que eu morra sem primeiro ver a morte daquele que tão vilmente escarneceu da minha boa filha, que era espelho de bondade e a que havia de maior valor sobre todas as mulheres dalém e daquém mar!
Parecia que a Condessa diria mais palavras mas a voz faltou-lhe com a dor e a indignação. Viram-na calar-se mas não fraquejar. De cabeça erguida e olhos secos, continuava em pé, no meio do conselho dos cavaleiros, e não recuou para dar a palavra a ninguém. Cortou o silêncio um cavaleiro de nome Henrique, primo da Condessa, e de muito preço junto do Conde:
- Senhor, ouvi tudo o que aqui foi dito e a mim parece que te devo dar conselho que seja em teu benefício. E o que eu vejo é que tu não poderás de nenhum modo fazer nada que nem Deus nem o mundo te censure porque não deves a Rodrigo vassalagem, pois que não foi dele que recebeste a tua terra. Mas ainda que lhe devesses lealdade como a senhor teu: direito terias de lhe fazer guerra, pois havia entre vós um acordo de entreajuda que ele quebrou quando assim fez a tua desonra. E ponhamos que, fazendo-lhe guerra, não o pudesses vencer. Enquanto estiveres em Ceuta nada te pode fazer. E tu tens aqui mais de dois mil cavaleiros que são forte hoste para enfrentar o rei da Espanha. E demais que ele não está prevenido contra ti e tu és senhor de todos os portos daquém e dalém mar de Ceuta e podes, se quiseres, fazer entrar em Espanha quem tu entenderes, de tal modo escondido que ninguém o perceberá. E esta é a tua força, que Rodrigo não poderá vencer! Por isso, prepara-te para a guerra, que eu mandarei avisar os reis mouros que estejam prestes.


E estas foram as notícias que receberam Muça, filho de Nocaide, e Miramolim e Tarique. E não passaram muitos dias sobre as areias de Ceuta a estarem prontas muitas galés, onde embarcaram escondidamente guerreiros mouros, que aportaram a Aljazira. E aí reuniu Tarique o seu exército e daí partiu para uma guerra feroz contra as terras de Espanha. E que vos direi da guerra, senão que a sua história é sempre a mesma em todas as partes e todos os tempos?


Quando Rodrigo teve notícias da queda das suas cidades do sul, aparelhou o seu exército e fez-se transportar à batalha. Ia em cima de um carro puxado por dois cavalos e feito de tal modo de marfim, ouro e prata e pedras preciosas que era maravilha nunca vista. E em cima do carro ia uma tenda e na tenda ia uma cadeira tão rica e trabalhada de pedras preciosas que nunca fora vista outra igual. E nessa cadeira ia Rodrigo, vestido e calçado de panos de ouro e pedras preciosas.
A Guadalete chegou o rei da Espanha. Ainda perguntava a si mesmo como fora que tudo aquilo acontecera mas sabia que não havia tempo de procurar respostas. Ao longe, os guerreiros mouros povoavam os montes, montados em cavalos de guerra, com seus arções, com as mãos nas lanças e nas espadas e nas béstas.



(termina no próximo post...)

domingo, 14 de setembro de 2008

A CASA DE HÉRCULES. 4. A CARTA.




Todos sabem que, quando lhes falta o sol, as flores escurecem. Misteriosas são aquelas que perdem as cores sem que a ninguém seja dado ver o que lhes falta. Assim foi Lataba. Era a mesma e não era. Demudava-se-lhe a cor ou o brilho, não se poderia dizer. Calava-se quando as outras riam, escusava-se com um pálido sorriso quando lhe pediam que dançasse. Encostava o ombro à janela e ficava a mirar as águas do Tejo, que passavam. E tão grande pesar lhe crescia no coração que começou de perder sua formusura mui desmesuradamente.




Alquifa via-a assim e esperava o dia em que lhe dissesse as suas razões. Mas Lataba nada dizia porque muito se envergonhava do que lhe escurecia o coração e sabia que nada de bom depois daquilo lhe poderia vir. E disse-lhe Alquifa:
- Amiga, tu bem sabes que desde que eu nasci nunca fiz coisa que te não dissesse e de te falar sempre me veio consolo e ajuda. E o mesmo cuidava eu de ti e agora vejo que algum mal te atormenta e pesa-me que não mo queiras dizer. Se é coisa em que eu te possa aconselhar, peço-te que mo contes e ajudar-te-ei.
Então lhe contou Lataba tudo o que se passara com el rei Rodrigo. E disse-lhe a prudente Alquifa:
- Amiga, digo-te que se tal coisa me acontecesse, o melhor que eu faria seria contar tudo a um homem em quem confiasse e de tal maneira que eu soubesse que me defenderia.
Respondeu Lataba:
- Se aqueles que ouvissem o que se passou julgassem o caso tal como aconteceu, eu não hesitaria em contá-lo a meu pai. Mas eu sei bem que o meu pai é homem de bom siso e eu bem vejo que todos os homens sisudos julgam as mulheres por más e por isso não ouso mandar dizê-lo ao meu pai, porque tenho medo que não acredite na minha inocência e julgue que o fiz por malícia e me abandone.
E disse Alquifa:
- Não tem sentido isso que dizes, pois os homens julgam sempre como lhes dermos a julgar. E sabe por certo que, se nada fizeres e el rei continuar a demandar-te, não pode estar que não emprenhes e, depois depois que fores prenhe, não poderás mais esconder o que aconteceu. E a rainha, que te quer como a uma filha, se o souber difamar-te-á e aí, sim, serás a mais infeliz mulher que pode haver. Por isso, se te calares não poderás evitar que seja sabido, com grande dano e vergonha tua. Mas se o contares com sabedoria e a quem deves, nunca te poderão acusar de nada. O melhor que podes fazer é escrever ao teu pai uma tal carta que o faça julgar o caso como a ti convém.


E assim sentaram-se ambas a escrever a carta, que uma ditava e a outra escrevia:
«Ó mui honrado e discreto, sisudo, prezado e temido senhor de Ceuta, Conde D. Julião, pai senhor, eu, Lataba, vossa desonrada filha, me mando encomendar a vós e beijar vossas mãos. A desonra da filha ofensa é do bom pai. Quero que saibais que vós, cuidando fazer vossa honra e meu bom futuro mandando-me para casa d’el rei D. Rodrigo, sucedeu o contrário, porque fizestes vossa desonra e minha grande perda, porque el rei Rodrigo, muito sem meu grado e contra minha vontade, deitou-se comigo. E por isso vos rogo, senhor, por Deus e por piedade, que me mandeis buscar, senão crede que eu me matarei com as minhas próprias mãos, pois eu antes queria cem vezes morrer do que viver mais um dia em casa d’el rei D.Rodrigo. Se quereis minha vida, mandai-me buscar para que veja ainda uma vez a minha mãe, senão despeço-me de vós.»
Entregue a carta a um escudeiro, com instruções para não parar no caminho até que chegasse a Ceuta, juntaram-se ambas às outras donzelas, fazendo por não dar sinais de nenhuma estranheza.



Quando Julião leu a carta da sua filha, o desgosto que sentiu foi tão grande que abalou aquele homem tão experimentado na guerra. Sem nada dizer a ninguém, mandou aparelhar uma galé e meteu-se ao mar. E andou tanto e com tão bons ventos que depressa chegou a Toledo. Ouvindo anúncio da sua chegada, Rodrigo, que o prezava como a nenhum outro cavaleiro, apressou-se a ir recebê-lo. E logo que fizeram as saudações que a tais grandes senhores pertenciam, perguntou-lhe:
- Pois D.Julião, que vos fez vir a Toledo tão inesperadamente? Algum mal porventura vos veio?
- Senhor – disse Julião – não queira Deus que a mim venha senão bem, enquanto vós fordes vivo, porque a vossa fortuna me dá tanto ânimo que nunca homem se cruzou comigo na guerra que o eu não vencesse. E, se vos apraz, contar-vos-ei como se passou a batalha que tive com Moluca, senhor de Calçom.
E Rodrigo disse que lhe prazia. E o Conde descreveu-lhe com que esforço, seu e de seus parentes e vassalos, conseguira mais uma vez suster o desejo dos mouros de se aproximarem do mar e como defendera o senhorio cristão de Ceuta. E como, chegado da batalha, fora achar muito doente a condessa sua esposa, e como lhe pesara tal coisa porque por aquela esposa era ele muito respeitado e temido em Ceuta, pelos parentes poderosos que ela tinha entre os mouros. E como ela lhe pedira que visse ao menos uma vez a sua filha, que muito amava, antes de morrer.
Ouvindo isto os vassalos que com o Conde vinham, e sabendo que era verdade a história da batalha mas não a da doença da esposa, cuidaram que fortes razões teria o Conde para levar embora a sua filha.
E disse-lhe Rodrigo:
- Por boa fé, D. Julião, muito me apraz de como vos haveis saído bem na batalha! E se vencestes Moluca, que é o mais forte, não há mouro nenhum de além-mar de que eu haja de temer-me. Mas o que dizeis da Condessa é coisa triste para mim, que a tenho por mui boa dona, a quem Deus logo dê saúde! Por ela vos entrego vossa filha mas tomai nota: não para que fique sempre convosco! Logo que sua mãe for curada, quero que ma envieis de novo, na companhia de todo o seu séquito como agora está, porque muita honra e alegria traz à minha casa.
O Conde hesitou por momentos, como se algumas palavras lhe quisessem romper os lábios mas ele as prendesse com uma corrente de ferro. Deu um passo em frente e olhando Rodrigo no olhos, disse-lhe apenas:
- Senhor, quando Deus quiser que ela venha, eu vo-la farei vir com tal companhia e séquito como nunca outra donzela entrou em Espanha!
E dito isto, recolheu à galé, onde lhe trouxeram a sua filha, com suas donzelas e servidores, e fizeram-se depressa ao mar.



(continua...)