

Nas noites quentes de Julho, enquanto lavava a loiça do jantar, depois de os irmãos pequenos terem saído para brincar na rua com os miúdos da vizinhança, dava uma curta licença à fantasia. As mãos cheias de espuma enluvavam-se-lhe e estendia-as a um rapaz de capa escura que assomava à porta da cozinha. Lá fora, entre os risos dos miúdos, escutava o relinchar do cavalo que ele prendera à entrada. Não era bonito mas tinha o queixo quadrado e os cabelos negros e um olhar difícil de entender mas onde ela se revia como num espelho.

Despertava com o pigarro do pai, sentado ao canto da cozinha. Já então ele sofria as fragilidades de uma angina de peito que se iria desenvolver com o tempo. A sua bronquite, agravada pelo maço de Definitivos diário, vinha desde a sua mais remota infância encher-lhe as noites de tosses distantes e cavas, ouvidas no quarto ao lado. O cheiro da linhaça quente embrulhada em pano de linho e os unguentos de enxúndia de galinha com que a mãe tratava o catarro e a debilidade do pai haviam de ficar para sempre na sua memória com uma lembrança enjoativa, vagamente lamentável, que embrulhava a memória do pai. Às vezes imaginava-o como ele se descrevia nas suas histórias de juventude aventurosa de contrabandista. Vindo da raia do Guadiana para o litoral, contava-lhe histórias luminosas de contrabandistas heróicos e de estúpidos guardas-fiscais, que acabavam sempre enganados no desenlace. Aos contos de bruxas e meninos perdidos que contava a avó ao serão, ela preferia estas odisseias picarescas, vividas enquanto as brasas do lar se iam consumindo lentamente e a sombra do pai se agigantava na parede de cal amarelada da lareira.