sábado, 12 de julho de 2008

Ponto pé-de-flor

No início da adolescência foi aprender a bordar para casa de uma senhora de respeito. Não sei se então as mestras de bordados exerciam também um magistério espiritual mas a verdade é que foi essa senhora que lhe ensinou que os homens são de outra espécie, respeitável porque é deles que vem o sustento, o futuro e o bom nome, mas fracos na cobiça da carne. Às mulheres cabe a sabedoria da espera: garantir-lhes a confiança necessária ao progresso da família mas também fugir-lhes comedidamente, para que resistam aos seus próprios fulgores.


Entre o ponto Richelieu (a mestra dizia richelié) e o ponto cruz, ligaram-se-lhe no espírito as linhas que a levaram a prometer à mestra que não consentiria a homem nenhum, salvo ao marido, quando ele viesse, mais do que a cordial distância, amigável e de temperado convívio. Teria então perto de 13 anos e a costura daquela promessa fez-se-lhe com os pontos certinhos e apertados de quem já bordava até ponto de pérola. Era, portanto, preciso esperar.


Nas noites quentes de Julho, enquanto lavava a loiça do jantar, depois de os irmãos pequenos terem saído para brincar na rua com os miúdos da vizinhança, dava uma curta licença à fantasia. As mãos cheias de espuma enluvavam-se-lhe e estendia-as a um rapaz de capa escura que assomava à porta da cozinha. Lá fora, entre os risos dos miúdos, escutava o relinchar do cavalo que ele prendera à entrada. Não era bonito mas tinha o queixo quadrado e os cabelos negros e um olhar difícil de entender mas onde ela se revia como num espelho.


Despertava com o pigarro do pai, sentado ao canto da cozinha. Já então ele sofria as fragilidades de uma angina de peito que se iria desenvolver com o tempo. A sua bronquite, agravada pelo maço de Definitivos diário, vinha desde a sua mais remota infância encher-lhe as noites de tosses distantes e cavas, ouvidas no quarto ao lado. O cheiro da linhaça quente embrulhada em pano de linho e os unguentos de enxúndia de galinha com que a mãe tratava o catarro e a debilidade do pai haviam de ficar para sempre na sua memória com uma lembrança enjoativa, vagamente lamentável, que embrulhava a memória do pai. Às vezes imaginava-o como ele se descrevia nas suas histórias de juventude aventurosa de contrabandista. Vindo da raia do Guadiana para o litoral, contava-lhe histórias luminosas de contrabandistas heróicos e de estúpidos guardas-fiscais, que acabavam sempre enganados no desenlace. Aos contos de bruxas e meninos perdidos que contava a avó ao serão, ela preferia estas odisseias picarescas, vividas enquanto as brasas do lar se iam consumindo lentamente e a sombra do pai se agigantava na parede de cal amarelada da lareira.

Lavada a loiça, enchia o pesado ferro de brasas e dava início à última tarefa do dia, vincando milimetricamente os calções dos irmãos.


Em breve eles iriam sair a cavalo!
A ela ficava-lhe a lenta e difícil tarefa da espera...