terça-feira, 25 de dezembro de 2007

O POSTAL FILOSÓFICO

Ultrapassada que está a asteriscal quadra (vede, Capitão, o respeito por vossas artérias) de positivas afirmações de valores, proponho-vos agora uma madura reflexão sobre os limites e os limiares da existência. Aproximamo-nos do dia em que olharemos para o caderninho do ano transcorrido, riscaremos as proposições alcançadas e transferiremos para o caderninho seguinte aquelas que ainda não foi desta.
Decorridas, há postais atrás, tomadas de posição contra existencialismos literários, em que eu própria lancei sobre a sartreana náusea o anátema do ilegível, proponho agora chamar as consciências à crueza da meditação especulativa.
Quantos de nós não pensámos já que a vida é inerentemente miserável e irracional? Não nos recordamos todos da angústia sentida quando a garrafa butano se acabava (na era pré-gás natural) a meio do gel de duche?



Quantos não exclamámos já, pelo menos interiormente, «Ah, l'enfer, c'est les autres!», permitindo que o nosso vizinho de banco se deixasse descair sobre o nosso ombro, vencido por um dia de duro labor e pela barbárie injustificada da loucura quotidiana?


Quantos não lamentámos, pelo menos uma vez, o peso da responsabilidade de sermos livres e não increpámos Agostinho, o santo do livre arbítrio, murmurando: «Não tive culpa, puseram-me o cálice à frente...»



E quantas vezes, na penumbra do silêncio e da solidão, não contemplámos a lua lançando-lhe as questões primordiais: Quem somos? O que fazemos? Para onde vamos? Quem nos move?


E não recorremos logo depois à providencial ajuda divina para aligeirar o questionamento?


Ah! E sabei ainda que na literatura há excelentes romances existencialistas, sim senhor:

Graça Pina de Morais, Eulália e Jerónimo, 1969





Fernando Sabino, O Encontro Marcado, 1956:






Os dois desenhos a pastel: Cecília Ferreira



domingo, 16 de dezembro de 2007

PRESÉPIOS


Presépio vem da palavra latina que significa estábulo, que foi onde nasceu, diz S.Lucas, o menino Jesus.

No princípio não era um tema muito tratado na arte iconográfica porque se dava mais importância à representação de outros momentos da vida de Jesus, como a Paixão ou a Epifania. Por isso, nas representações mais antigas do nascimento aparecia apenas Maria com o menino nos braços, apresentando-o aos pastores e aos magos. Nada de S.José, que era figura insignificante no acontecimento. A vaca e a burra também não entravam na história, nem as ovelhas.
A partir do séc.XI, os magos passam a ser também reis, representados com coroa, e fixam-se em número de três, que era um número redondo para mostrar a globalidade das raças humanas. Portanto, um deles passou a ser preto. Aos poucos S.José foi aparecendo mas quase sempre num plano recuado em relação a Maria. No séc. XII, com a difusão dos evangelhos apócrifos, onde aparece a vaca e a burra, o presépio entra na moda e fazem-se representações ao ar livre, com mímica, nos adros das igrejas ou atrás do altar-mor. Aqui começava a história do teatro europeu. Como às vezes estas “peças” geravam desordens, a igreja proibiu-as.


No Natal de 1223, S.Francisco de Assis obteve autorização papal para fazer um presépio, que montou em Greccio com figuras de tamanho natural feitas de madeira, palha e tecido, e juntou-lhes uma vaca e uma burra vivas. O presépio populariza-se definitivamente e difunde-se por toda a Europa, graças sobretudo à promoção que dele fizeram os franciscanos.


No séc. XIV já aparece representado no túmulo de Inês de Castro em Alcobaça e não têm conta as iluminuras do séc.XV que trataram o tema:



Aqui, as regras de representação não incluíam o realismo, por isso, o estábulo é estilizado e preenchido com um manto púrpura e dourado que desce a acolher Maria e o menino. S.José fica de fora do manto.


Nunca mais o presépio deixou de inspirar os grandes pintores portugueses. Por exemplo Grão Vasco (1475/80?-1542743?), com este quadro:





Aproximando-se já da linguagem renascentista, com paisagem em perspectiva ao fundo e realismo nas figuras humanas, as vestes continuam a representar figuras da época do pintor, como se usava nos séculos anteriores, e a arquitectura do cenário continua evocativa e simbólica.



Neste outro, Grão Vasco já adopta a representação realista do espaço e faz-nos sorrir com a particularidade da representação do mago negro como um índio brasileiro, em clara “actualização” do Natal vista por um pintor curioso pelas mais recentes novidades:






No séc. XVII, Josefa de Óbidos (1630-1684) não esqueceu o presépio, por exemplo aqui:





Ou neste outro, de enorme intensidade dramática graças aos fortes contrastes de luz e de sombra e onde Maria e José são substituídos por Francisco e Clara, numa belíssima evocação romântica da ligação amorosa dos dois santos de Assis:


quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Cinco livros famosos ...

.... de que não gostei.

Aviso prévio:
Isto NÃO É uma corrente! É apenas uma confissão pública de desgosto, inspirada por uma recente onda de desgostosas confissões.

Não gostei d'O Ano da Morte de Ricado Reis (José Saramago, 1984):



Inesquecível, a descrição de Laura como uma criada de pensão, lubricamente desejada enquanto lavava as escadas, e os ressentimentos marxistas (?!) trazidos à mente do monárquico Ricardo Reis, enquanto passava pela sopa dos pobres. Tudo embrulhado em sintaxe gratuitamente desfeita e em oportunidade comercial de centenário comemorativo.
Não gostei d'O Velho e o Mar (Ernest Hemingway, 1952):
Inesquecível, a patética ilusão humana de vitória sobre as forças da natureza e de desafio à divina providência pela morte de criaturas não racionais. A crueldade como elemento de qualificação do herói em meados do séc. XX ?
Não gostei de Capitães da Areia (Jorge Amado, 1937):

Inesquecível e mais patética ainda, a iniciação do herói através da perseguição e da violação de meninas indefesas e de rapazinhos estigmatizados. Insuportável a sugestão de que as vítimas se conformam com o seu destino de despojo de guerra.

Não gostei d'A Náusea (Jean-Paul Sartre, 1938):





Com muita pena, porque sou admiradora entusiástica de todo o teatro sartreano. Mas nesta prosa encontro excesso de capacidade mimética: cada página desencadeia enjoos e tonturas angustiantes.


Não gostei de Vale Abraão (Agstina Bessa-Luís, 1991):




Com muita pena também, pelas gratas horas de Sibila e por ver um bom tema com grandes personagens esvair-se numa narrativa errática e inconsistente.


(E agora que venham os moralistas da cultura indignar-se e protestar contra o atrevimento.)





domingo, 9 de dezembro de 2007

Os cinco de um certo topo

Este post resulta de um supersticioso respeito pelas correntes.
Não quero que nada de mal aconteça aos meus amigos.
Os pedidos de eleição dos cinco filmes ou livros ou músicas ou pratos preferidos é sempre um bocadinho desconcertante. Escolher quais, entre tantos de que se gosta? As obras-primas? Os que, sem o serem, por alguma razão nos fizeram piegasmente chegar a lágrima ao canto do olho? Os que, sem nos arrepiarem o braço, nos deixaram porém a pensar durante as duas horas seguintes? Os que não mostravam nada de novo mas tinham uma magnífica banda sonora? Os que, sem uma grande história nem uma especial eficácia narrativa, tinham aquele brilhante desempenho daquele brilhante actor?
Fiquemos por aqui. Cheia de compaixão pelos jurados das Academias que oferecem palmas, óscares e outros troféus, apresento a minha lista, sem critérios. Só porque sim.
Inevitavelmente, os americanos. O único filme sobre o Vietnam que não é só um filme sobre o Vietnam: The Deer Hunter, Michael Cimino, 1978




Um filme de evocações e trágicas grandezas: The Rose, Mark Rydell, 1979




Um filme sobre a posse: Out of Africa, Sydney Pollack, 1985





E dois italianos recentes (deixo as antiguidades para o Cuore):




Cinema Paradiso, Giuseppe Tornatore, 1988



La Vita è Bella, Roberto Benigni, 1997




Uma vez que os cortes de corrente nos deixam às escuras, aqui vai o convite:
Lizzie
Musashi
Around These Words
Capitão Haddock
Madame Maigret

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Reviver a moda em cabelos

Depois de um século inteiro a reciclar a moda do século XX, está na hora de assumirmos corajosamente reviver modas mais antigas. Em vez de recuperarmos mais uma vez as calças à boca de sino dos anos 70, as saias evasé dos anos 50 ou as cinturas descaídas dos anos 30, proponho que pugnemos por uma moda verdadeiramente revivalista.
Comecemos pelo regresso a uma merecida atenção prestada aos cabelos e à arte de os acondicionar.
No século XV, como nos anteriores, uma autêntica senhora não mostrava os cabelos. Poderoso atributo erótico, devem manter-se escondidos ou domados sob toucas e toucados, nos quais se exprime o status e a personalidade de quem os usa. Lamentavelmente, os nossos estilistas têm descurado este importante adereço.
Eis um modelo simples e discreto, que poderíamos usar numa ocasião formal onde não ficasse bem dar demasiado nas vistas, por exemplo num almoço de convívio com a família do namorado. Assim fez a Infanta D.Leonor, filha de D.Duarte, quando foi pela primeira vez ao encontro (1451) do seu esposo, o Imperador Frederico III da Alemanha, com o qual já tinha casado por procuração, em Lisboa:


Para uma festa mais extravagante, por exemplo uma nocturna ida ao Lux, poderíamos colher muito boa inspiração neste magnífico toucado de Isabel de Portugal, Duquesa da Borgonha, esposa de Filipe o Bom, com o qual casou em 1430:


Pessoalmente, confesso que prefiro este modelo sóbrio e requintado da sua neta, Maria de Valois, que teve fama de ser mulher de personalidade forte e determinada. Fácil de combinar com um tailleur de corte executivo, é o mais adequado para reuniões profissionais movimentadas e dinâmicas:


Numa tarde de Verão, passada entre amigos, esta touca de Isabel a Católica, rainha de Castela, possui leveza e sensualidade. As tranças, ao mesmo tempo que sugerem sedução, permitem encarar com confiança o vento de uma esplanada sobre as praias da Linha:

Para as mais ousadas e temerárias, aqui fica a sugestão da filha, Joana, a Louca, de Castela. O cognome veio-lhe do indecoroso costume de se apresentar em cabelos, por isso este interessante e arrojado penteado deve guardar-se para aquelas noites especiais, de encontros íntimos:

Por fim, uma touca em pedras preciosas, ajustando os cabelos bem penteados da Princesa Santa Joana, que morreu em Aveiro em 1490, sublinhará em qualquer olhar feminino um certo tom de mistério que deixará fascinado o sexo oposto num primeiro encontro: